sábado, 24 de novembro de 2018

A Espiritualidade da Religiosidade segundo as Ciências da Religião

PALESTRA UNINTER. Simpósio de Psicologia e Ciências da Religião, 24 e 25 de novembro de 2018. A ESPIRITUALIDADE da RELIGIOSIDADE segundo as CIÊNCIAS da RELIGIÃO. Introdução. As Ciências da religião estudam os fenômenos religiosos (textos e celebrações, hábitos e costumes, história e doutrina, experiências individuais e comunitárias) dos seres humanos, no objetivo de fazer um amplo inventário a fim de tanto identificar semelhanças e diferenças entre as religiões, quanto para compreender as relações desses fatos religiosos com a existência humana. Pois é a compreensão do universo cultural religioso que vai esclarecer a maneira pela qual o ser humano está nele inserido. Veja que a religião é a própria crença e o conceito doutrinário essencial da fé, enquanto que a religiosidade trata da disposição da pessoa para as práticas religiosas, sendo reconhecida exatamente nas atividades de piedade e devoção, o que acaba revelando o real sentido dado pelo indivíduo à sua fé. A religiosidade também observa as práticas espirituais de contato místico que movimentam o psicológico do ser. Enfim, a religiosidade de uma pessoa é que acaba definindo a maneira pela qual ela crê existencialmente, ao invés de só intelectual ou racionalmente. Observe que enquanto o cientista da religião observa esses fenômenos que surgem a partir da vivência religiosa da crença e fé, é preciso estar atento ao terceiro aspecto envolvido nesta relação, que é o da espiritualidade do homem – o que não significa afirmar ou concordar que ele é um ser com espírito ou alma. Mas sim, que a Espiritualidade é um elemento que compõe igualmente a personalidade da espécie humana, algo anterior à religião ou a religiosidade enquanto fenômeno a ser percebido. Portanto, entende-se que a espiritualidade é um aspecto da personalidade humana que existe antes da religiosidade; essa mesma religiosidade que visualizamos na devoção e nas atividades religiosas iniciais que o homem pratica, as quais irão gerar uma cultura religiosa ou elementos religiosos adentro da cultura dos homens. Então, serão estes últimos os elementos sagrados observáveis tanto na religiosidade quanto na cultura – os fenômenos religiosos em si, que se tornarão o objeto de análise e pesquisa do cientista da religião. Nesta perspectiva, as ciências da religião se interessam pelo ser, pois a origem da vivência religiosa da humanidade ocorre a partir do elemento da espiritualidade que se situa exatamente na personalidade dos seres humanos. Daí o nosso título: a Espiritualidade da religiosidade segundo as Ciências da religião. A Espiritualidade segundo a Filosofia. No início de 2018 o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé publicou o livro: Espiritualidade para Corajosos – a busca de sentido no mundo de hoje: “A vida não tem sentido evidente, portanto é necessário dar um sentido a ela, como disse o escritor francês Albert Camus.”, esclarece Pondé. (1, p 11) O filósofo afirma que estava encantado com a possibilidade de ter esperança a partir de uma busca de sentido segundo as perspectivas da espiritualidade. (2, p 11). Uma reflexão, aliás, que todos podemos fazer, pensando se não foi exatamente este o motivo que nos levou ao interesse pelo estudo das religiões e das pessoas, em um certo momento da vida, não é mesmo? O processo desenvolvido pelo filósofo “é uma peregrinação às formas mais comuns de espiritualidade, na medida em que ele não se atém aos limites de uma espiritualidade religiosa clássica.” “Essa terra estrangeira está diretamente ligada à ideia de que a coragem e a esperança são as virtudes capitais na espiritualidade.” (3, p 12). O escritor observa que “espiritualidade” é aquela palavra pela qual as pessoas indicam no seu dia a dia, algo como que uma vida para além da vida meramente material. E aqui o que lhe interessa são os elementos e aspectos relacionados aos conhecimentos práticos da espiritualidade, referindo-se aos aspectos da vida humana que são como que “regados” em experiências místicas – experiências de contato com o divino ou com o sagrado, através de missas e orações, meditações e magistérios, e trabalhos físicos. (4, p 20). Uma perspectiva conceitual do entendimento da palavra “espiritualidade” que foi construída a partir do século 17, numa busca que procura entender a dimensão humana da realidade da espiritualidade, percorrendo um caminho na direção do que pode ser compreendido como aquilo que transcende o mundo propriamente humano. (5, p 19). Segundo a filosofia grega o “espírito” é compreendido a partir de seu sentido intelectual como sendo o “nous”, ou a parte mais alta da alma em Aristóteles, que é o que nos dá uma condição de vida autônoma e racional. O espírito humano aqui é aquele que conhece, reconhece e reproduz a estrutura cósmica imanente que dá ordem e harmonia pra existência. (6, p 44). Já no mundo bíblico de Israel e que irá se desenvolver nas três religiões monoteístas do judaísmo, cristianismo e islamismo, o “espírito” é o próprio coração do ser humano, centro de sua vida consciente, moral e sensível. Daí a busca de uma certa relação mais “pessoal” na vivência do aspecto da espiritualidade nestas religiões. (7, p 45). Enfim, seja numa tradição mais especulativa e filosófica de reencontro junto da harmonia cósmica do sagrado, ou ainda, na busca de um vínculo mais pessoal diante do divino; a questão segundo Pondé, é que a espiritualidade se move ao desenvolver esse “vínculo” integrativo entre o material e o imaterial no próprio ser do homem. Entre sua alma e seu corpo, seu intelecto e coração, entre a eternidade e o presente. Para Pondé, “o cotidiano da vida do espírito é um cotidiano que se realiza nesse vínculo.” (8, p 48). Pois, para o filósofo, a espiritualidade do ser humano é um aspecto da sua personalidade que o orienta a buscar uma resposta para trazer ordem às coisas da sua existência. Assim que ele encontra essa ordem organizada ou orientada (numa religião ou filosofia de vida), é a própria espiritualidade da sua personalidade que irá transparecer gravemente na maneira pela qual ele irá vivenciar sua história a partir desse momento. Observe que esta perspectiva da espiritualidade a partir da filosofia indica o ser humano e sua personalidade como a origem e a base das vivências e manifestações do sagrado e da religião em nosso mundo e cultura. Importa, agora, buscar a partir das ciências da religião possíveis dados verificáveis que propiciem o esclarecimento de tais proposições que visualizam a espiritualidade como um elemento da personalidade. As Ciências da Religião. É uma disciplina que estuda os fatos da religião e da vivência religiosa dos homens – seus textos de doutrina e a história, suas práticas piedosas e devocionais, além dos hábitos e costumes sociais relacionados ao sagrado, além de observar sentimentos e sensações, e as compreensões e perspectivas com as quais o homem enxerga sua vida a partir de algum princípio ou realidade religiosa. Trata-se de um estudo que ocorre a partir do próprio ser humano, enquanto visualizamos sua personalidade e hábitos relacionados à religião. O campo do estudo das religiões se organizou na história perto de 150 anos atrás, na década de 1870, com uma crescente consciência corporativa de autores se articulando a favor da disciplina, a partir de encontros na Suíça, Holanda, França e Bélgica, e a partir do início do século 20, na Inglaterra e Alemanha, e posteriormente, na Itália. (9, p 19 Compêndio da Ciência da Religião). Max Muller declarou em 1882: “O estudante da história das Ciências naturais nem sente raiva com o alquimista nem briga com o astrólogo: ele simplesmente quer entender como eles enxergam as coisas.” 10, (p 20) C P Tiele defendia em 1897 que “o estudo das religiões assegurou um lugar permanente entre as diferentes ciências humanas.” (11, p 19) Edward Caird afirmou em 1899 que as ciências modernas devem tanto estudar os fatos, quanto realizar interpretações conceituais dos mesmos. (12, p 20) Para que isso ocorra a contento, é preciso vistoriar os fatos semelhantes e distintos das religiões, e realizar uma sistematização de tais dados; deve-se descobrir princípios de conexão entre as religiões e seus peculiares elementos; e jamais julgar a qualidade dos fenômenos investigados. James Houghton Woods disse em 1906 que o cientista religioso “deve assumir o ponto de vista de um observador.” (13, p 20) As Ciências clássicas que comumente realizam este estudo são a História, Sociologia, Antropologia e Psicologia, investigando os fatos e vivências da religião. É necessário, ainda, se debruçar sobre a etnicidade, gênero, mito, pós-modernismo e o colonialismo; e estar atento aos aspectos de uma análise que será feita a partir de desafios hermenêuticos, epistemológicos, metodológicos e éticos – todos vinculados ao conceito do sagrado. O objetivo final é desenvolver o estudo das tradições religiosas e seus textos. (14, p 27) (Compêndio de Ciência da Religião, Organizadores: João Décio Passos e Frank Osarski, Paulinas e Paulus, 2013, SP). A Sociologia da Religião estuda tanto a cultura quanto seu agente essencial, o ser humano. Observe que se a religião de uma pessoa esclarece qual é a sua crença conceitual, serão a sua religiosidade e devoção que irão gerar as atitudes e experiências que darão vida a essas ideias no mundo dos homens – e quando isso ocorre, surge a cultura. Pois cultura é tudo aquilo que o homem realiza a partir dos elementos da natureza física e biológica, humana e do cosmos. Remexer a terra e ali colocar sementes dá início ao processo da agricultura. Movimentar nosso coração e mente interiores, e enxergar o cotidiano da vida na perspectiva do sagrado, dá início ao processo de criação de uma cultura religiosa junto da humanidade. Portanto, será importante perceber que a religiosidade do homem em ação no dia a dia e que as atitudes e atividades que este homem organiza a partir de um viés religioso são, igualmente, cultura. Assim como a arte e o lazer, o trabalho e estudo, a política e o comércio. Quanto mais demorarmos para reconhecer que a religiosidade é uma cultura em processo a partir do momento em que o ser humano vivencia ideias e valores a partir de sua personalidade – assim como faz quando realiza qualquer ação e partilha qualquer experiência neste mundo; maior dificuldade teremos de tratar da religião como um componente natural da humanidade, a partir do qual será possível desenvolve-la socialmente de maneira civilizada e edificadora de uma cidadania que traga boa convivência para todos, ao invés de discórdia. Sabe-se que a cultura abarca toda a vivência adquirida pelo convívio social do homem, o que inclui todo o conhecimento e a arte, as crenças e a moral, os costumes e hábitos recebidos. Como, igualmente, entende-se que a cultura é uma experiência contínua de transformação daquilo que o homem recebe do meio em que vive, pois enquanto ele vivencia sua existência na sociedade, ele também desenvolve a cultura. Pois a cultura é transformada constantemente logo que é influenciada por novas concepções inerentes ao desenvolvimento da personalidade. As Ciências da Religião e a Cultura. Os primeiros dados e indícios de uma cultura religiosa da humanidade surgiram perto de 50 mil anos atrás, a partir da análise de um conjunto de manifestações que transcendiam as necessidades imediatas da sobrevivência. Isso porque não existe uma definição simples de religião que consiga expressar todas as suas dimensões. No entanto, é possível reconhecer que uma religião, ou uma religiosidade organizada enquanto cultura, abrange elementos espirituais, pessoais e sociais, sendo um fenômeno que aparece em todas as culturas humanas, desde a pré-história até a atualidade, conforme atestam pinturas em cavernas, costumes funerários e certos objetivos espirituais. Entender a natureza do meio em que se vivia e buscar alguma forma de controle e interação desse ambiente era o objetivo essencial destas vivências religiosas até aproximados 5 mil anos atrás. (15, p 12, O Livro das Religiões). Logo que as sociedades se tornaram mais complexas, os sistemas religiosos acompanharam esse movimento de forma ampla, a fim de atender às necessidades existenciais mais abrangentes destes povos. As religiões ofereciam modelos para que os homens pudessem organizar sua vida – através de ritos e crenças, tornando-se, ainda, um elemento essencial pelo qual o homem poderia compreender seu papel no mundo. (16, p 12). Portanto, a religião não deve ser reconhecida como um artefato social, mas sim, como um elemento fundamental da humanidade, capaz de representar e expressar de forma profunda a nossa existência. Pois a religião atua tanto na perspectiva da experiência pessoal da consciência do ser, como no entendimento da razão e do sentido da vida, se relacionando tanto com o pessoal quanto com o social de todos nós. (17, p 12). Eis o motivo pelo qual as ciências da religião devem observar tanto os elementos externos da vivência religiosa, como as rezas e peregrinações, vestimentas e celebrações; junto de seus objetos físicos, que são os artefatos e relíquias, locais de culto e regiões consideradas sagradas. E, ainda, deve-se notar os elementos subjetivos da religião, que são os aspectos místicos e emocionais pelos quais o homem religioso se sensibiliza enquanto busca alcançar seus anseios pessoais, como a iluminação e a paz interior. Na busca do entendimento de como se organiza uma cultura religiosa, ou da maneira pela qual a cultura humana geral é influenciada pela perspectiva do sagrado, deve-se reconhecer os princípios que norteiam a religião enquanto um sistema de organização e orientação da existência humana. Inicialmente as religiões explicavam e estabeleciam a origem e o sentido da vida a partir dos mitos, narrativas mágicas e misteriosas com personagens heroicos e sobrenaturais; sendo que num segundo momento, as filosofias grega e chinesa buscaram conceitos mais racionais, razoáveis e factuais, a fim de oferecer respostas e projeções para a existência do homem. (18, p 13). Foi então que surgiram os textos sagrados, oferecendo narrativas e relatos destas observações míticas ou filosóficas, gerando uma doutrina com princípios gerais e mandamentos específicos, o que vai definir uma ética pessoal e social ao homem religioso – os sentimentos e atitudes pelos quais ele deve viver: eis, portanto, a maneira pela qual cultura religiosa toma forma em nosso mundo, a qual será investigada e reconhecida, finalmente, pelos pesquisadores da religião. Pois a busca e verificação desses dados razoáveis adentro da vivência humana é o próprio objeto das Ciências da Religião. As Ciências da Religião observam a Cultura a partir do Ser. O Sociólogo americano Jeffrey Alexander argumenta que a cultura – as ideias e as crenças de um grupo que são produzidos coletivamente – é fundamental para o entendimento da vida humana. Pois somente através da vivência e criação da cultura é que os seres humanos conseguem se afastar de um estado primordial para refletir e atuar sobre o mundo ao seu redor. (19, p 207, O Livro da Sociologia). Para ele, “a falha de Bourdieu... é que ele não reconhece... que a cultura tem certa autonomia em relação à estrutura social.” (20, p 209). Pois ainda que os teóricos clássicos da sociologia reconheçam a importância da cultura na existência humana, nem sempre observam a ideia de que a cultura é essencial para entender por que as pessoas pensam e agem da forma como o fazem. K Marx era reducionista porque defendia que a cultura era determinada pela organização social da sociedade, a qual era definida pela economia. Max Weber era racional em suas concepções, vindo a diminuir o papel das emoções e dos valores na reação dos indivíduos junto dos relacionamentos da vida. Alexander utiliza as ideias de Durkheim que propunha um entendimento da religião a partir de uma separação do que era sagrado (ritos e crenças) diante do profano (a vida cotidiana). (21, p 207). Ao perceber a cultura a partir da visão do sagrado como um elemento distinto e também constitutivo da sociedade, Alexander reconhece a cultura como uma estrutura autônoma, mas igualmente dependente da sociedade, a qual tanto capacita para se transformar, como limita para se manter, a partir de aspectos tanto racionais como irracionais que são a base de seu desenvolvimento e materialização. “Sua sociologia cultural foca o entendimento de como os indivíduos e os grupos se envolvem na criação de sentido ao fazer uso da produção coletiva de valores, símbolos e recursos – formas de falar a respeito das coisas – e como isso, por sua vez, molda suas ações.” (22, p 207). Eis a maneira pela qual ele reconhece a cultura como uma realidade distinta, pois separada do meio em que surgiu, mas igualmente, um elemento que atua conjuntamente ao influenciar as pessoas e grupos sociais que nela interagem. Tal compreensão lhe traz o entendimento de que os eventos da realidade da cultura devem ser identificados a partir de “dentro” – a partir daquilo que as pessoas realizam para dar sentido à sua existência naquela sociedade. Trata-se de uma abordagem interpretativa da cultura, com um olhar retrospectivo, o qual deve iniciar na identificação e reconhecimento de dados existentes na pessoa envolvida no processo, o ser humano, antes de tudo. Pois da mesma maneira que se reconhece a existência das estruturas sociais que dão sentido à vivência do homem no mundo, sejam as elites ou as determinações econômicas, igualmente existem as estruturas culturais. E a partir desta estrutura é que a sociologia irá compreender os seres humanos como criaturas sociais, procurando realizar um “estudo de como os indivíduos se comportam em grupos e como seu comportamento é moldado por esses grupos.” “E, já que a sociedade é uma coletânea de pessoas individuais, existe uma conexão inevitável entre as estruturas da sociedade como um todo e o comportamento de seus membros individuais.” (23, O Livro da Sociologia). Eis como, então, ao analisar as instituições e organizações da sociedade, os sociólogos devem singularmente tratar das experiências dos indivíduos e suas relações ali desenvolvidas. Portanto, não se pode compreender ou identificar as instituições sociais e o próprio produto finalizado de sua construção cultural, sem abordar as atividades pessoais oriundas das práticas religiosas dos seres humanos. Atividades da religiosidade que não tem origem essencial na religião (crença), mas sim, na espiritualidade da personalidade humana, que simplesmente visualiza a fé enquanto um código que vai trazer alvo e projeto para suas aspirações de espiritualidade. Uma Hermenêutica de aproximação: Da maneira pela qual as Ciências da religião buscam o homem religioso a partir do método de análise do texto. A Hermenêutica da religião de Etienne Alfred Hiquet indica que a boa análise dos fenômenos religiosos deve realizar uma interpretação de suas linguagens no objetivo de identificar as vivências do sagrado existentes a partir daquele texto. O propósito é esclarecer quais as intenções existenciais resultantes da realidade religiosa dos símbolos e mitos, ritos e doutrinas. “Ao fazer isso, entende que o que será reconhecido neste estudo de um objeto oriundo da religião, é o próprio ser humano ali destacado, assim que o interpretamos em suas obras ali descritas, que podem ser chamadas de “arquivos de humanidades.” (24, p 461). (Compêndio). Pois o objetivo da hermenêutica é exatamente extrair o sentido do texto, desenvolvendo uma análise que faça surgir o significado dos sentidos ainda latentes do mesmo. (25, p 461). Segundo Mircea Eliade, “o comportamento do ser humano religioso é o espelho de sua experiência do sagrado. Tal comportamento manifesta-se em seus símbolos, mitos e ritos, que tem relação com sua vida concreta e história, mas enquanto relacionada com acontecimentos originários e instauradores.” (26, p 462) E dentro desta perspectiva, “o sagrado implica uma ampliação da fonte de sentido além da subjetividade e da linguagem humana para além dos limites da ontologia. O sagrado se dá como uma experiência de excesso de sentido, que ultrapassa o limite da existência doadora do sentido. Os textos (ritos, mitos, crenças) nos remetem a esta experiência. Eles são documentos preciosos para uma arqueologia do humano e do sujeito. O símbolo religioso é o modo de linguagem destes textos...”. (27, p 462). Nesta perspectiva, a análise desenvolvida pela fenomenologia deseja alcançar a compreensão da “experiência do sagrado como fenômeno primeiro... assim poderemos compreender o sagrado a partir dele mesmo, em sua escala.” 28, (p 461) A Espiritualidade da Religiosidade segundo as Ciências da Religião. A espiritualidade enquanto um elemento da personalidade humana passível de ser identificado enquanto se analisam os atos e fatos da religiosidade que um dia a religião orientou para que o homem praticasse... se tornaram o próprio objeto de pesquisa do estudioso Rudolf OTTO, tema de sua obra clássica e revolucionária, O Sagrado, publicada em 1917. Segundo Mircea ELIADE, “em vez de estudar as ideias de Deus e da religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise das modalidades da experiência religiosa. Dotado de grande refinamento psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de teólogo e de historiador das religiões, Rudolf Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência.” (28, p 16) (O Sagrado e o Profano) R Otto havia lido e compreendido o significado da expressão, o “Deus vivo”, conforme o reformador protestante Lutero a tinha enunciado, reconhecendo que tal palavra não se relacionava a um entendimento filosófico, mas sim, intitulava a realidade de uma existência “outra”, que era perceptível exatamente a partir das sensações que provocava na psique do homem, particularmente, a de ser um “poder terrível” e divino que se sobrepunha sobre a personalidade do homem religioso que a vislumbrava. Segundo Eliade, Rudolf Otto buscou esclarecer em sua obra O Sagrado, o “caráter específico dessa experiência terrífica e irracional.” O propósito era identificar esse “sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, em que se expande a perfeita plenitude do ser.” (29, p 16). Estas experiências religiosas do homem serão denominadas de “numinosas” (do latim numem, “deus”) “porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino.” Importante observar que esta vivência religiosa da personalidade humana surge de uma sensação do indivíduo enquanto este percebe algo que “não se assemelha a nada de humano ou cósmico” – uma experiência da qual ele sairá tendo uma compreensão de si mesmo como sendo a de uma criatura do cosmos, a partir dos próprios termos com que o Pai da fé das religiões da Palestina, Abraão, se utilizou para se colocar diante de Deus; a de que naquele momento, ele não era “senão cinza e pó”. (30, p 16). R Otto e M Eliade reconhecem que estas próprias expressões de linguagem pelas quais se deseja identificar uma realidade absolutamente sobrenatural serão sempre limitadas, pois oriundas da nossa existência somente natural. No entanto, Otto buscou enuncia-las exaustivamente em seu livro, a fim de que as sensações dessa experiência religiosa que se encontra adiante e anterior à religião, à religiosidade e à cultura, pudessem ser reconhecidas como elementos da vivência do sagrado enquanto aspectos pelos quais a nossa personalidade humana expressa o valor da espiritualidade – aquele elemento humano que trata de visualizar o que não é meramente material, enquanto buscamos sentido pra existência. (31, p 17, O Sagrado e o Profano, M Eliade) Conforme R Otto, “este será seu intento no tocante à peculiar categoria do sagrado. Detectar e reconhecer algo como sendo “sagrado’, é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso... (pois) apresenta um elemento ou “momento” bem específico, que foge ao acesso racional... sendo algo utilizado árreton (“impronunciável”), um ineffabile (indizível”), na medida em que foge totalmente à apreensão conceitual.” (32, p 36, Otto). Para o pesquisador, “o elemento de que estamos falando e que tentaremos evocar no leitor está vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne, sem o qual nem seriam religião. Presença marcante ele tem nas religiões semitas, e de forma privilegiada na religião bíblica. Ali ele também apresenta uma designação própria, que é o hebraico Qadosh, ao qual correspondem o grego hagios e o latino sanctus...”. (33, p 38). Rudolf Otto então, se utiliza do temo “numinoso”, a fim de expressar esta sensação que acomete o homem religioso, segundo ele, “referindo-me a uma categoria numinosa de interpretação e valoração bem como a um estado psíquico numinoso que sempre ocorre quando aquela é aplicada, ou seja, onde se julga tratar-se de objeto numinoso.” A definição de um termo para clarificar a existência desta sensação e peculiar experiência religiosa, tem o objetivo, para o escritor, de “levar o ouvinte a entende-la conduzindo-o mediante exposição àquele ponto de sua própria psique onde então ela surgirá e se tornará consciente...”. (34 p 38-39). Alguns aspectos pelos quais se deseja evocar e perceber a existência da experiência do “numinoso” para Rudolf Otto, são: a) Aspecto Tremendum, arrepiante, um termo latino que evoca medo ou terror, e que algumas línguas designam como “temor”. (35, p 45). b) Aspecto Majestas, que trata do estado de “inacessibilidade absoluta” no qual se encontra o numinoso, revelando algo de sua majestade enquanto é reconhecido a partir de seu poder e domínio. (36, p 51). c) Aspecto Energético, pelo qual se deseja exprimir as características da vivacidade, paixão, vontade, força, comoção e excitação que são inerentes ao divino “vivo”, e que acionam na psique do religioso o sentimento de zelo. (37, p 55). d) Aspecto Mysterium, que trata de revelar um ser estranho e não compreendido, inexplicável; ou seja, o mistério religioso, que em sua melhor formulação, é o “totalmente outro, pois estranho e que causa estranheza. (p 58). Conforme Agostinho: “O que é aquilo que reluz através de mim e percute meu coração sem feri-lo? Estremeço tanto quanto me inflamo. Estremeço no quanto lhe sou dessemelhante. Inflamo-me no quanto lhe sou semelhante.” (Confissões, 11. 9,1). (38, p 60) e) O Aspecto Fascinante, pois ainda que esteja distante a partir do tremendum de sua majestade, segundo R Otto, “ele também parece algo atraente, cativante, fascinante, em curiosa harmonia de contraste com o elemento distanciador. Segundo Lutero: “É como quando reverenciamos com temor um santuário, sem que por isso fujamos dele, mas desejamos nos aproximar dele.” Um autor mais recente escreve: “O que me apavora me atrai.” (39, p 68). Segundo Rudolf Otto, “toda a história da religião atesta essa harmonia contrastante, esse duplo caráter do numinoso...”. “Trata-se, na verdade, do mais estranho e notável fenômeno na história da religião... E a criatura que diante dele estremece no mais profundo receio sempre também se sente atraída por ele, inclusive no sentido de assimilá-lo. O mistério não é só o maravilhoso (wunderbar), mas também aquilo que é prodigioso (wundervoll). Além de desconcertante, é cativante, arrebatador, encantador, muitas vezes levando ao delírio e ao inebriamento – o elemento dionisíaco entre os efeitos do nume. Este chamaremos de aspecto “fascinante” (Fascinans) do nume.” (40, p 68). Observe que a maneira pela qual Rudolf Otto identifica a existência do elemento da espiritualidade na personalidade humana, a fim de revelar a origem das sensações de assombro que nos surgem diante da perspectiva do sagrado, e que irá se materializar na religião, e depois nos atos de religiosidade que vão criar a cultura – trata-se de um método técnico de observação relacionável aos que são utilizados pelos matemáticos e astrólogos quando definem a existência de planetas e astros que eles não conseguem visualizar através de dados visíveis. Veja que o planeta o Netuno foi predito antes de ser observado de fato em 1846 por Johann G. Galle e Heinrich L. d´Arrest. A previsão de sua existência baseou-se nos cálculos matemáticos das perturbações observadas nas órbitas dos planetas Urano, Saturno e Júpiter. Pois o primeiro tipo que caracteriza os métodos de detecção de planetas, está associado aos efeitos dinâmicos na estrela causados pela interação gravitacional com o planeta em órbita. De modo que são as “perturbações” observadas e os efeitos dinâmicos da interação gravitacional que indicam a existência... de planetas que não se podem enxergar. E para o nosso objeto, não se deseja indicar aqui a existência do divino, como o fazem os cientistas das ciências exatas assim que indicam a realidade de planetas que não podem visualizar; mas sim, reconhecer que as sensações e anseios percebíveis na personalidade humana no que refere à busca do que não é material e nem humano, são, sim, traços de um aspecto que denominamos de a “Espiritualidade da Religiosidade segundo as Ciências da Religião.” As sensações humanas que apresentam o elemento da espiritualidade enquanto um componente natural da nossa personalidade, estão expostas igualmente nas pesquisas que reconhecem o valor da esperança e da resiliência enquanto realidades experienciadas naqueles que tem fé ou crenças, ou seja, são movidas a partir de sua espiritualidade. CONCLUSÃO Aproveitando de uma reflexão de Mircea Eliade, que percebia o homem moderno como aquele indivíduo que busca viver cada vez mais num universo dessacralizado, pois totalmente desconectado de qualquer valor religioso; eis que se reconhece que um dos resultados desta busca por uma existência absolutamente “natural”, pois liberta das realidades das religiões, desenvolveu igualmente a compreensão gravemente anti-natural da existência de uma personalidade humana excluída de um elemento que lhe é essencial, a própria espiritualidade da espécie. (41, p 19). Para Eliade, esta dessacralização do mundo, tem impedido o homem moderno de “reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas”. E dentro do nosso propósito, compreende-se que tal posicionamento tem dificultado a humanidade de receber das observações dos cientistas religiosos, algumas valiosas perspectivas existenciais que somente a espiritualidade dos homens poderá nos prover. (42, p 19, M Eliade). Há duas proposições com as quais desejo, simpaticamente, finalizar esta reflexão: a primeira é que se faz necessário que os próprios cientistas da religião reconheçam a espiritualidade enquanto um componente a ser levado em conta assim que observam a psique e os hábitos, os textos e doutrinas, enfim, todos os fenômenos religiosos de todas as religiões, da humanidade. Em segundo lugar, cabe-nos bem utilizar nossos dados religiosos científicos para, segundo os princípios de sabedoria da China e Índia antigas, desenvolver políticas de governança da sociedade, ao invés de somente bem organizar estruturas de pensamento das academias. Somente assim iremos propiciar à nação brasileira, quiçá, uma experiência de convivência civil tolerante em que todas as religiosidades venham a existir conjuntamente sem com isso constantemente colidirem; algo que na civilização indiana, o hinduísmo conseguiu bem edificar. Finalmente, creio que poucos temas serão mais edificantes em nossas vidas, do que o estudo dos fenômenos religiosos – pois sempre estaremos rodeando as mais profundas e íntimas sensações do ser humano, já que abordamos os mistérios mais amplos que nos cercam assim que os visualizamos. E ainda, corremos o risco de não somente saber quase tudo que se pode acerca de nossa espécie enquanto cientistas, como, até, podemos ir além: quem pode negar que não estamos todos estudando a própria alma espiritual da espécie humana. Por que não? Professor M Ivan Santos Ruppell Júnior (Faculdade Fatesul). (ruppelljr@gmail.com) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1, p 11. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje, Luiz Felipe Pondé, edit Planeta, 2018, SP) (2, p 11. Pondé) (3, p 12. Pondé) (4, p 20. Pondé) (5, p 19. Pondé) (6, p 44. Pondé) (7, p 45. Pondé) (8, p 48. Pondé) (9, p 19 Compêndio de Ciência da Religião, Org: João Décio Passos e Frank Osarski, Paulinas / Paulus, 2013, SP). 10, (p 20. Compêndio) (11, p 19. Compêndio) (12, p 20. Compêndio) (13, p 20. Compêndio) (14, p 27) (Compêndio) (15, p 12, O Livro das Religiões, GL, Edit Globo, 2014). (16, p 12. Livro das Religiões) (17, p 12. Livro das Religiões) (18, p 13. Livro das Religiões) (19, p 207, O Livro da Sociologia, GL, Edit Globo, 2015) (20, p 209. O Livro da Sociologia) (21, p 207. O Livro da Sociologia) (22, p 207. O Livro da Sociologia) (23, O Livro da Sociologia). (24, p 461. Compêndio) (25, p 461. Compêndio) (26, p 462. Compêndio) (27, p 462. Compêndio) (28, p 461. Compêndio) (29, p 16. Mircea Eliade. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. Livraria Martins Fontes editora, 1992, SP) (30, p 16. Eliade) (31, p 16. Eliade) (32, p 17. Eliade) (33, p 36. Rudolf Otto. O Sagrado. Editora Vozes, 2007, Petrópolis) (34, p 38. Otto) (35, p 38-39. Otto) (36, p 45. Otto) (37, p 51. Otto) (38, p 5. Otto) (39, p 60. Otto) (40, p 68. Otto) (41, p 68. Otto) (42, p 19. Otto) (43, p 19. Eliade, O Sagrado e o Profano)