sábado, 2 de janeiro de 2021

a Espiritualidade da Bondade, no "cinema": O GAMBITO DA RAINHA, Netflix, 2020. p/ Ivan S Rüppell Jr

"Estou aqui porque precisa que eu esteja", diz Jolene para Beth Harmon no último episódio da série, que se torna uma frase representativa dos relacionamentos da protagonista durante o desenrolar de "O Gambito da Rainha", da Netflix. Sim, os seres humanos da história da enxadrista mais famosa do século 21 são pessoas bondosas; vindo daí nosso título, que deseja investigar um pouco sobre a espiritualidade deste sentimento. Segundo Jesus de Nazaré, uma compreensão profunda dessa virtude está descrita na experiência mais simples que a humanidade é capaz de vivenciar, conforme foi descrita na parábola do "Bom Samaritano". Ali, Jesus esclarece que amar ao próximo é simplesmente cuidar de quem está diante de nós, e assim, iremos agir com bondade sempre que remediarmos alguma necessidade das pessoas, conforme nossa condição naquele momento. No caso, o samaritano bondoso conduziu um homem ferido do meio da rua ao pronto socorro, já que lá no primeiro século não tinha serviço público de locomoção de necessitados; sendo que, após contar esta história, e ouvir o comentário de que "aquele que tratou com bondade" o homem ferido, foi quem o amou como seu próximo, Jesus concluiu: "Faça a mesma coisa." O gambito da dama no xadrez é uma abertura de jogo em que se perde uma peça pra alcançar vantagem mais tarde, e a missérie baseada no livro de Walter Trevis, "O Gambito da Rainha" foi gravada nos padrões do cinema clássico norte-americano, já que se propõe a contar uma história de forma linear, assim como os dias na vida da gente seguem sempre pra frente, no tempo. Desta forma, há uma valorização da naturalidade no andamento dos dramas relacionais do enredo do filme, que são aquelas situações que vão chamar a nossa atenção e tocar sentimentos. E quando você agrega a este modelo clássico de contar uma história, algo do realismo europeu cinematográfico que expõe seus temas buscando valorizar a crueza diária da vida comum, extraíndo sua força da sinceridade existencial com que apresenta a humanidade, então, eis como a sétima arte alcança a qualidade que a tornou um veículo de comunicação excepcional. Sendo que, decorridos 125 anos do surgimento do cinema, esta técnica eficaz tem se tornado cada vez mais comum, e, ao seguir com competência este modelo, os produtores Scott Frank e Allan Scott fazem com que as pouco mais de 6 horas de duração da minissérie sejam assistidas tranquilamente, o que permite definir "O Gambito" como uma obra de muito boa qualidade. Segundo o blog de críticas "omelete", esta nova série de ficção "conta a história de Elizabeth Harmon (Taylor-Joy), uma jovem que sobrevive ao acidente de carro que resulta na morte da sua mãe, e conhece o xadrez durante sua estadia em um orfanato, revelando, desde pequena, uma habilidade fora de série. Recontando sua vida da infância até a maturidade e passando por diversos campeonatos regionais e internacionais, a série diverte o espectador mesmo com jogadas previsíveis, apostando na adrenalina bem construída das partidas de xadrez, e investindo em personagens carismáticos." O blog informa que os ex-campeões de xadrez Jennifer Shahade e Garry Kasparov concordam com o modo como a série apresenta o ambiente competitivo dos torneios, e indica o filme sobre a vida de Bobby Fischer, "O Dono do Jogo" (2014), pra quem estiver interessado no tema. (Julia Sabagga, 5/11/2020). Ainda, conforme o crítico Dylan McClain do NYT, as principais vitórias de Beth são baseadas em jogos reais de grandes torneios. Os ambientes e locações da série são caprichados e a fotografia e apresentação cinematográfica das cenas revela o talento dos realizadores, que conseguem transportar o espectador para os anos 60 utilizando cenários e cores, roupas e músicas de um modo intimista, assim como fez Spielberg em "Prenda-me se for capaz", servindo-se dos elementos históricos e cenográficos do filme pra caracterizar os dramas da narrativa. E as apresentações das partidas de xadrez são criativas e interessantes, algo similar ao que Martin Scorsese realizou no filme "A Cor do dinheiro" (1986), sobre a sinuca e jogo de bilhar, ao retomar a história do personagem Eddie Felson, protagonizado pelo astro Paul Newman. A protagonista Taylor-Joy lidera com carisma e vivacidade um elenco de atores bastante capaz e sincero nas atuações, o que valoriza a proposta de mover os sentimentos da história pela força da realidade das situações, ao invés de forçar emoções inesperadas com enredos e personagens desconectados da vida real. Nossa enxadrista excepcional partilha sua história desde pequena, e durante a adolescência e juventude com uma dezena de personagens que carregam consigo igualmente, a virtude de agir bondosamente sempre que possível junto dela. Ao visualizar a aparição dessa virtude nas experiências diversas da protagonista, iremos nos sentir até um pouco desnorteados, tanto ao deparar com esta estranha sensibilidade relacional que anda meio rara em nossos dias, como, pelo fato de que a maioria das séries atuais promovem seus dramas através de traições e grosserias, enquanto buscam extrair emoções da plateia. No entanto, a capacidade espiritual da humanidade em praticar misericórdia ao oferecer uma atitude bondosa ao próximo, surge como uma vivência distinta e peculiar desta minissérie que já seria valiosa em tantos outros aspectos, como citado acima. Sendo que, a simplicidade e facilidade com que esta virtude surge nas situações mais diversas no decorrer da história, evidencia ainda mais a distância que estamos de valorizar hoje em dia, a experiência da bondade gratuita e cotidiana. Neste sentido, o filme vai auxiliar a entender como virtudes importantes podem ser recuperadas na história, desde que a personalidade das pessoas seja educada a compreender o valor das atitudes mais básicas, que de tão simples podem até se tornar um padrão natural nas culturas do futuro. Certa solidariedade que fez parte da década de 60, que foi um período da história em que a humanidade corria atrás de reconstruir valores de respeito e compaixão, devido às desgraças e violência da segunda guerra mundial, que havia terminado somente quinze anos antes. Pois, como bem destaca Jolene para Beth; ela jamais foi um anjo da guarda de sua irmã de orfanato, mas sim, apenas procura fazer o que pode para ajudar o próximo, enquanto vai levando a vida. Portanto, ainda há esperança para todas as gerações e idades deste novo século 21 vislumbrarem para o nosso cotidiano, a possibilidade de nos relacionarmos tendo em mente fazer simplesmente algo de bom para as pessoas nas situações que vivemos. Afinal, a bondade e misericórdia é uma das bem-aventuranças ensinadas por Jesus, que disse: "abençoados são vocês, que se preocupam com o bem-estar dos outros. Na hora em que precisarem de ajuda, também receberão cuidado." Em tempo: o primeiro professor de xadrez de Beth foi William Shaibel, zelador da Casa Mathuen para meninas, sendo que esta experiência de aprendizado é revivida poética e sensivelmente ao final da série. Bom filme, com indicação etária acima de 15 anos.

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