terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O DOGMA DA GRAÇA COMUM. Abraham KUYPER.

Esse texto contém um resumo do capítulo "A Graça Comum na visão de Kuyper", do livro, Abraham Kuyper e as bases para uma teologia bíblica, de Thiago Moreira. INTRODUÇÃO. "Abraham Kuyper (1837-1920) foi um homem envolvido em diversas áreas. Desenvolveu atividades teológicas, jornalísticas, universitárias, acadêmicas, políticas e eclesiásticas. (...) Abraham Kuyper pretendia apresentar o calvinismo como um sistema de vida abrangente que se pautava em princípios cristãos e que ia de encontro ao outro sistema de vida antagônico que denominava de modernismo. (...) Portanto, conservadorismo, socialismo e liberalismo eram modelos indesejáveis para Kuyper, como é demonstrado ao longo desta obra. (...) Assim, a religiao no neocalvinismo, deve ser um instrumento de crítica religiosa, portanto profética, mas não no sentido pueril e supersticioso com que se entende vulgarmente; antes, profética pois portadora de uma mensagem carregada de transcendência, do eterno e do infinito, julgando e julgando-se." (p. 25-54). CAPÍTULO 6. "A GRAÇA COMUM NA VISÃO DE KUYPER. Cosmogonia, doutrina da criação e a manifestação da graça comum na humanidade." O desejo de entender o significado da existência é um aspecto íntimo da humanidade que move a cultura do ser através da história. Há diversos enredos e proposições buscando refletir e apresentar a realidade da vida e cosmos, tratando desde a origem da existência humana até da veracidade de deuses, passando por um propósito para os eventos da história ou então do seu acaso. Nesse contexto, tanto a ciência como a teologia procuram definir uma narrativa elaborada que traga aspectos da origem e do movimento da vida e do mundo cosmológico. Os próprios mitos deveriam ser observados como proposições imaginativas sugestivas de uma visão de interpretação do mundo, assim como as soluções mais diversas dadas pela ciência, religiões, filosofias etc surgem como visões formatadas e de significado, numa concepção peculiar da realidade. "A história sagrada primordial é fundamento e legitimação para outros mitos (...) No caso do judaísmo e do cristianismo, como ressalta Eliade, observa-se pela primeira vez afirmada e aceita a ideia de certa definitividade dos acontecimentos históricos, no sentido de possuírem valor em si mesmos, já que são determinados por Deus." A realidade histórica é percebida como uma apresentação de movimentos do sagrado, "de modo que torna-se um drama cósmico entre criador e criatura, Deus e a humanidade, a partir de um valor religioso da história e da vida como um todo; em suma, uma sacralização da vida." (p. 195-198). "Na narrativa cosmogônica judaico-cristã, Deus é o artífice de tudo. A tudo deu sentido e propósito." (p. 198). Foi Deus que criou céus e terra, separou as águas e formou a humanidade, junto de todos os animais e plantas que existem. Neste movimento, a humanidade separou-se de Deus em meio a uma experiência de tentação espiritual maligna geradora da desobediência essencial, que jogou o mundo e tudo que nele existe na maldição do pecado. "Na perspectiva cristã, a restauração da relação de Deus com a humanidade, especificamente seus eleitos (os que ouvirem seu chamado e o atenderem), assim como o restabelecimento da terra e do cosmos como um todo em sua plenitude somente seriam realizados por intermédio do sacríficio redentivo de Jesus Cristo em um drama de criação, queda e redenção." A humanidade foi corrompida em sua natureza essencial e a imagem de Deus no ser humano está completamente pervertida, sendo que "o homem é incapaz de fazer o bem, tal como previsto no Catecismo de Heidelberg". (p. 199). Esse conhecimento da realidade humana e cosmológica apresenta uma existência terrível, com o mal assumindo certo protagonismo nas atividades humanas no cosmos, de modo que somente a degradação moral e o ódio bárbaro deveriam determinar a totalidade da vida no planeta. "Contudo, uma breve análise empírica mostra que não é essa a situação da humanidade, uma vez que ela se desenvolveu cultural, tecnológica e cientificamente, bem como em outros campos da existência, muito embora tenha se imiscuído em momentos aberrantes, bélicos, escravagistas e suicidas. Kuyper preocupava-se com essa questão. Como poderia o mundo - e por mundo entenda-se um sistema ético dominado pelo pecado - comportar a humanidade, notadamente aqueles que não se submeteram à graça salvadora de Cristo, e tê-la produzindo coisas boas e louváveis? A graça comum seria a resposta." (p. 200). A história bíblica esclarece que após a "queda" do homem diante de Deus, a vida humana e o cosmos do planeta enfrentaram grave corrupção e crescimento da maldade, até que Deus decidiu realizar um juízo datado sobre o planeta através de um dilúvio universal, que somente não atacou Noé e família, e casais de animais. Ao final deste evento, "Deus se pronuncia para abençoar Noé e os seus, outorgar-lhes um mandato cultural e realizar um pacto com a humanidade." (p. 201). O estabelecimento histórico da doutrina da graça comum se relaciona ao pacto realizado por Deus junto a Noé, sendo um pacto que deveria ser mais valorizado que os de Abraão e dos patriarcas, já que para Kuyper "se trata de um evento significativo e decisivo para a história e desenvolvimento humanos em uma perspectiva reformada." (p. 201). Kuyper destaca que o pacto com Noé carrega consigo elementos e aspectos significativos e visíveis, como o próprio arco-íris na criação, sendo algo que tornou Noé como um "segundo progenitor da raça humana". (p. 202). Enquanto Adão fora criado direto por Deus, Noé carrega consigo a descendência dos ancestrais humanos, sendo que "a importância da aliança noaica espraia-se, também, em sua relação com o futuro da igreja, que não se dá diretamente, mas pelas modificações realizadas na vida humana em geral e por ter preparado o ambiente favorável não só para o desenvolvimento sociocultural humano, mas para a fundação e preservação da igreja na vida terrena." (p. 202). A aliança noaica foi dada por Deus a toda humanidade e planeta sem necessidade de acordo, garantindo que até a segunda vinda de Cristo todo o cosmos seguirá sem um evento drástico e conclusivo de sua existência em nosso mundo. "Mesmo que a humanidade ainda permaneça sob a maldição do pecado, a graça comum restringe seus efeitos impedindo que ela se torne tão má e tirana como descrito no período pré-diluviano; "a besta dentro do homem permanece igualmente má e selvagem, mas as barras em torno de sua jaula foram fortificadas, de modo que não pode mais escapar como antes". (Kuyper, Commom Grace, I, p. 10-11). (p. 202). A partir das bases da graça comum Kuyper declarou que Aristóteles tinha maior conhecimento do cosmos que os pais da igreja e que o conhecimento da cosmologia cresceu debaixo do islamismo melhor que nos monastérios cristãos. Pois uma visão dualista e a distinção entre sagrado e profano na observação do mundo ocorre a partir de uma visão corrompida do evangelho, segundo Kuyper. Para ele, "a regeneração sofreu uma interpretação dualista consubstanciada na dicotomia natureza e graça." (p. 203). O olhar religioso se voltou para os céus e negou a realidade e o valor do cosmos, do ser humano e das responsabilidades temporais. O discipulado e a adoração a Cristo se afastaram do fato de que Deus é o criador dos céus e de toda terra, fazendo com que os cristãos viessem a negar aspectos reais da existência neste mundo, impedindo uma boa compreensão da realidade da vida e do ser humano na história. "Cristo foi concebido exclusivamente como o Salvador e seu significado cosmológico foi perdido de vista". (Kuyper, Calvinismo, p. 125). (p. 203). Sabe-se que Deus tem se revelado de forma especial através de sua Palavra, e igualmente tem se revelado de uma forma geral, "em que toda a criação guarda em si o brilho divino por ser fruto de seu desígnio". (p. 204). Desta forma, Kuyper ressalta que a revelação da Glória de Deus em sua majestade está exposta mais na própria criação, do que na salvação. Assim, a doutrina da graça comum "demonstraria sua soberania e domínio sobre a criação por meio de dons e virtudes que concederia para o desenvolvimento humano." (p. 204). "Segundo Kuyper, a graça comum é um dogma facilmente extraído da leitura da narrativa bíblica e seu drama cósmico de criação-queda-redenção, além de empiricamente verificável pela observação da história humana e seu desenvolvimento, alías, de sua possibilidade." (p. 204). A preocupação da reflexão de Kuyper surge do fato em que a humanidade deveria seguir rumo a uma corrupçao existencial cada vez maior a partir da queda e do pecado, sendo capaz de promover somente o mal na existência. E se essa fosse toda a verdade, os seres humanos distantes da graça especial do conhecimento de Cristo se tornariam tão somente "pessoas pérfidas e (auto) destrutivas." (p. 204). Neste contexto, Kuyper entende que "dogmas" "são doutrinas explicativas de pontos fundamentais à existência humana que encontram suas fontes reservadas na revelação divina exposta na Escritura." (p. 205). Portanto, "o dogma da graça comum explicaria uma antropologia bíblica que responderia sobre pontos fundamentais que concernem à natureza humana, à formação e ao desenrolar da vida sociocultural." (p. 205). A análise antropológica de Kuyper não nega a realidade da "depravação total" do ser humano diante de Deus a partir da entrada do pecado no mundo, mas deseja "conciliar a hipótese, por meio de uma leitura exegética da narrativa bíblica, de um ação positiva divina que mitigaria essa depravação, o que traz a célebre ideia de uma graça comum (gratia comunis ou gemene gratie)." (p. 205). Enquanto a graça especial de Deus em Jesus Cristo realiza a fundamental e necessária regeneração integral da humanidade e criação mediante a salvação religiosa cristã, Kuyper vislumbra o entendimento teológico daquilo que Deus tem promovido no mundo, no objetivo de "refrear o impulso pecaminoso por meio da graça, não a salvifica, mas a comum, que restringe a ação do pecado na vida e na história. A graça comum passa a ser uma lente interpretativa da história e da manifestação cultural." (p. 206). Kuyper vai anotar a realidade fática dos mais diversos atos benditos de Deus na história, em eventos mundiais e situações locais, destacando como Deus enfraquece a força do pecado a fim de oferecer a condição de uma vida social aos homens neste mundo. "É essa a graça que serve de fonte para a virtude e dons artísticos, filosóficos, culturais e científicos." (p. 206). A história das nações apresenta, neste sentido, as conquistas e também as perdas incríveis de impérios diversos, demonstrando como a vida humana cotidiana se desenvolve enquanto Deus manifesta igualmente sua graça comum. Eis o motivo para o cristão não assumir "uma visão dualista da existência e reconhecer a graça de Deus manifestada na criação", de modo que deve-se valorar tudo de bom e importante que os seres humanos não regenerados promovem na história, sendo que isto não significa abraçar tudo que a humanidade produz como se bom fosse: "os frutos da graça comum a serem reconhecidos devem ser os que não foram totalmente deturpados pela pecaminosidade humana e são capazes de mostrar consonância com uma ética cristã." (p. 207). O conceito teológico da graça comum permite vislumbrar atos e valores éticos na atividade de pessoas não convertidas, ao mesmo tempo em que se observa a utilização e frutos destes conhecimentos serem destinados para corromper a sua ideia e alvo iniciais. Kuyper destaca dois aspectos de análise da realidade a partir do dogma da graça comum. A depravação espiritual do ser não significa que a humanidade pecadora é incapaz de realizar coisas boas, ao mesmo tempo em que a regeneração espiritual em desenvolvimento na Igreja de Cristo não tem gerado todas as bênçãos devidas. "É nesse sentido que Kuyper entende que se pode verificar, ao longo do tempo, incrédulos que são moralmente melhores que o que se espera e crentes piores que o desejado. Negar isso seria fechar os olhos à realidade", sendo que Kuyper utiliza a atitude de Abimeleque diante de Abraão como exemplo. (p. 207-208). Deste modo, Kuyper apregoa que a afirmação teológica sobre a incapacidade de fazer o bem que acometeu a humanidade após a queda do pecado seria uma verdade integral no desenvolvimento da vida social na história, se o ser humano "não tivesse na graça comum o freio de seus impulsos malignos ou nela uma forma de mantê-los controlados." (p. 208). Ao integrar estes entendimentos antropológicos e fenomenológicos, Kuyper "sustenta que a experiência cotidiana comprova ser possível notar a ação divina no controle da natureza maligna da humanidade por meio das "grades da graça comum", a ponto de torná-la inofensiva." (p. 208). Desta forma, o dogma da graça comum atua em dois movimentos. Regula e restringe na criação os efeitos da queda e pecado; e capacita "a humanidade com dons e virtudes variadas para a promoção e desenvolvimento sociocultural a fim de possibilitar ambiente viável ao plano divino para a existência humana. Kuyper argumenta que o fato de o mundo todo ainda estar de pé e manifestar alguma beleza, a despeito da terrível maldição do pecado, deve-se à divina graça comum." (p. 209). Kuyper enfatiza que as bênçãos oriundas da graça comum na história da humanidade caída, somente alcançam seus propósitos benditos porque Deus de forma soberana criou o mundo desde o início na condição de suportar e se desenvolver a partir desta ação da providência divina; afirmando que a graça comum não é acidente, "mas sim algo incorporado desde o início ao plano divino". (p. 210). "Por essa razão, pode-se constatar que a graça comum é instrumento divino atuante também nos que não são regenerados, demonstrando que nem todo o bem que produzem é fruto de uma graça particular ou salvífica." (p. 211). Ao destacar o pensamento teológico cristão que buscou analisar os atos da providência divina para abençoar a sociedade no decorrer da história, anota-se que "há uma convergência possível entre o pensamento de Agostinho, Calvino e Kuyper no que diz respeito à revelação divina na criação e na humanidade em especial. Calvino sustenta que a razão por meio da qual o ser humano discerne entre o bem e o mal e exerce seus julgamentos não é totalmente apagada mesmo diante da queda, "mas foi em parte debilitada e em parte viciada" (Inst. II. 2.12). (p. 214). Calvino estabelece este entendimento ao definir a existência na história de "coisas terrenas" e de "coisas celestes", de forma que as muitas realizações humanas que não pertencem ao Senhor e a seu reino, ainda "mantém uma relação com a razão da vida presente e são contidas de algum modo entre seus fins". (p. 214). Nesse contexto, as coisas terrenas contém a ordem cultural da humanidade, desde a política e artes, enquanto que as coisas celestes apresentam "Deus e o conhecimento da vontade divina, e a regra de que a vida se forme segundo essa vontade." (p. 214). A partir disto, Calvino valoriza elementos terrenos realizados pela humanidade pecadora e não regenerada, como os que distinguem a correção e a ordem social, entendendo que além da "semente da religião", os seres humanos carregam desde a criação certa "semente de alguma ordenação política", pois para o reformador de Genebra, "na constituição desta vida, a nenhum homem se destituiu a luz da razão." (Inst. II, 2.13) (p. 215). Sendo este último, um pensamento encontrado também em Agostinho. Calvino apresenta nesta reflexão o que seriam os frutos da revelação geral, compreendidos como benesses da graça comum pelos kuyperianos, os quais são percebidos no fato dos seres humanos conservarem consigo através da história nuances e potenciais oriundos da "luz da razão", no momento de discernir e também desenvolver a realidade da existência da humanidade na história. "Nesse sentido, Kuyper afirma que muitos dos deveres e virtudes que comumente são vistos como cristãos estendem-se, na verdade, a todos; não seriam propriamente cristãos." (p. 216). Tal percepção é voltada para anotar virtudes diversas dos homens na sociedade, como a honestidade e pacifismo, e o interesse pelo que é correto e bom, sendo que este pensamento vai gerar uma grave diferença no modo em que Kuyper define quais seriam os deveres humanitários e sociais dos cristãos, e quais seriam os deveres oriundos de outras religiões. Sendo que muitas das boas ações civis na história decorreriam, assim, de valores enraizados "na ordem natural da existência humana", que não seriam providos no mundo necessariamente pelo cristianismo. "Na humanidade, portanto, é possível encontrar, indistintamente, a capacidade de realizar o bem civil." (p. 217). Para Herman Bavinck (1854-1921) (Calvin and Commom Grace), "a graça comum é também um ato de misericórdia de Deus para com a humanidade, ao interpor-se e refrear o pecado", de modo que a própria "natureza é sustentada pela esperança que Deus implantou no coração humano por sua graça"; sendo esta uma reflexão que se incorpora ao pensamento de Kuyper sobre o desenvolvimento da graça comum na história, apregoando que "a vontade de Deus é soberana e prevalece em tudo." (p. 217). Pois, "a ênfase calvinista na vontade soberana de Deus entende que esta é fundamental não somente para o processo criador da existência, mas também para sua manutenção." (p. 218). Assim, a graça comum é utilizada para que Deus revele a sua glória na história humana, em uma ação independente da graça especial e regeneração cristãs, posto que Deus tem derramado dons e virtudes para toda a humanidade vivenciar e desenvolver neste período da existência. Finalmente, anota-se que "a teologia de Kuyper não negligencia a piedade ou a obra salvadora, basta ver suas publicações de sermões, devocionais e textos esparsos sobre o tema (embora indiscutivelmente a parte de sua obra dedicada à cultura, política e sociedade é bem mais divulgada e estudada). No pensamento do teólogo neerlandês, rompe-se esse dualismo - que sempre afligiu (e ainda aflige) a igreja - por meio do resgate da compreensão do Cristo cósmico, cuja redenção alcança toda a criação." (p. 222). REFERÊNCIAS. MOREIRA, Thiago. Abraham Kuyper e as bases para uma teologia bíblica. Brasília, DF - Editora Monergismo, 2020. Autor. Ivan S Rüppell Jr é professor, advogado e ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, atuando na gestão de ações sociais das igrejas.

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