sexta-feira, 18 de setembro de 2020

ESTADO e POLÍTICA no pensamento de CALVINO, segundo Henri Strohl , p/ Ivan S. Rüppell Jr

“Calvino foi um patrono dos direitos humanos; lutou contra os abusos do poder em seu tempo e chegou até mesmo a lidar com o problema político-filosófico da desobediência civil e do direito de revolta. Em seu pensamento ele antecipou os fundamentos da moderna forma de governo republicano, tornou-se um dos pais da democracia moderna, e contribuiu decisivamente para a compreensão cristã do relacionamento entre lei natural e lei positiva.” (R. Q. Gouvêa; Calvino, p 8, 2001). INTRODUÇÃO: No interesse de propor à Igreja de Cristo, alguns princípios bíblicos e atividades cristãs de orientação “vocacional” ao povo de Deus para uma Missão Integral na sociedade, iremos apresentar aspectos da Cosmovisão Reformada para uma atuação cidadã do Cristão, especialmente diante da instituição do Estado; iniciando neste primeiro artigo, com as avaliações de Henri Strohl sobre o pensamento de Calvino, acerca do tema. CITAÇÃO Inicial. “Se houve qualquer movimento religioso, no século 16, que tenha tido uma atitude afirmativa em relação ao mundo, esse foi o Calvinismo.” (Alister McGrath; p 249, 2005). SOCIEDADE, ESTADO E POLÍTICA, segundo o pensamento de João Calvino, conforme o livro "O Pensamento da Reforma”, de HENRI STROHL. “Calvino é, dentre os Reformadores, quem melhor elaborou seu pensamento político. Seus estudos jurídicos prévios concorreram muito nesse sentido. Haja visto o capítulo sobre o governo civil com que termina a primeira edição da IRC e que já se apresentava em forma tão acabada que não sofreu maiores alterações nas edições posteriores”. (Henri Strohl; p 230, 2004). A obra, “O pensamento da reforma”, de Henri Strohl veio suprir na década de 1960 uma lacuna considerável na formação de estudantes e acadêmicos de teologia. O conteúdo do livro aborda de forma didática, temas abrangentes do pensamento dos principais teólogos da Reforma. E, nesse tópico de nosso artigo, iremos utilizar as considerações do tema da Providência de Deus e do Estado, segundo análise desenvolvida pelo autor ao pensamento de João Calvino. Henri Strohl apresenta o pensamento dos reformadores destacando algumas afirmações de suas obras literárias, enquanto desenvolve explicações para interligar os conteúdos anotados. Portanto, o texto a seguir contém o entendimento de Strohl acerca do pensamento de Calvino, sendo que as anotações realçadas foram extraídas do pensamento de ambos, conforme indicado. O pensamento de João Calvino acerca da importância da moralidade divina no mandato social do cristão está contido dentro do tema maior da Providência de Deus. Segundo Strohl, Calvino trata do tema da Providência na perspectiva de realçar o “equilíbrio entre a dependência absoluta de Deus e o dever humano da previdência.” (p 153, 2004) Calvino se posiciona contrariamente à visão “estoica” da providência, que entendia o mundo como sendo uma máquina em movimento, o que o fez salientar o aspecto sobre o modo em que a providência divina tem uma atenção e cuidado especiais pela existência de cada criatura. Portanto, a Pessoa de Deus deve ser percebida como o mestre e moderador de todas as coisas, o que significa que o Senhor vai “presidir de tal modo que as coisas presididas se conduzam com ordem e harmonia” Nesse contexto, a experiência de José no Egito se torna um exemplo utilizado por Calvino, para representar o modo como Deus governa os atos maus dos homens no interesse de que se tornem algo bom, segundo seus propósitos. (p 108, 196, 2004). Um segundo aspecto destacado pelo autor, apresenta o olhar calvinista de que os atos da providência de Deus não negam a importância dos atos da previdência humana, posto que, ao contrário, requerem da humanidade que assuma e pratique integralmente toda ação que for de sua particular responsabilidade. A interpretação dada ao texto bíblico de Provérbios 16.9 esclarece o princípio: “O coração do homem deve considerar seus próprios caminhos, e o Senhor governará os seus passos.”; sendo que nesse texto, Calvino deseja salientar a maneira como “o decreto eterno de Deus não impede que conduzamos em ordem nossa vida,” conquanto as nossas atitudes ocorram segundo a sua vontade. Segue um destaque das afirmações dadas pelo reformador: “Reconheçamos, portanto, nosso dever. Se o Senhor confiou-nos a guarda de nossa vida, conservemo-la; se nos concedeu meios para tal fim, usemo-lo; se nos aponta perigos, não nos lancemos neles estupidamente; se nos oferece remédios, não os desprezemos... O acautelar-se e o proteger-se são dons inspirados por Deus para que os homens conservem a vida e, assim, sirvam ao seu propósito.” (Strohl, p 113-115, 2004). A plena confiança em Deus não deve impedir o homem de fazer o que lhe cabe, mas sim, obriga-nos a praticar o que Deus delegou sob a nossa responsabilidade. Nesse contexto, os fiéis irão entender que todos os meios disponibilizados por Deus para que o homem aja com previdência, devem ser considerados como bênçãos divinas dadas à humanidade; daí que não devemos recusar os instrumentos dados pela providência divina para o cuidado de nossas vidas. Deve-se, então, acatar a segura orientação de Deus para agir com sabedoria diante da realidade, sabendo que os recursos que temos irão fortalecer a nossa confiança n`Ele; ao invés de serem utilizados para aumentar nossa soberba ou dar demasiada atenção para a nossa falta, ou abundância de recursos. (Strohl, p 154-155, 2003). Conforme Strohl, “para Calvino, a soberania absoluta de Deus, e a inteira responsabilidade do homem são dois elementos da verdade, ambos revelados, não obstante nossa mente não possa harmonizá-los.” A compreensão desse conteúdo está na afirmação de que toda vez que os propósitos de Deus são realizados através da maldade dos ímpios em desobediência a seus mandamentos, isto não significa que eles não serão culpados do que fizeram, conforme o exemplo da paixão de Cristo: “O Pai celestial entregou seu Filho à morte; Jesus Cristo entregou-se à morte; Judas entregou seu mestre à morte”. (p 155, 2004). O autor ressalta um dos pensamentos mais significativos de João Calvino e do calvinismo histórico, ao expor o princípio da “Graça Comum” de Deus. E para enfatizar o modo em que esta graça foi disponibilizada a toda humanidade, o reformador assinala que “a natureza humana, conquanto decaída na sua integridade, continua possuidora de muitos dons de Deus”. Estes dons são denominados “graças naturais”, tendo sido dados a homens bons e maus, o que torna imperativo que a humanidade faça bom uso de cada um deles, para que não sejamos negligentes diante desta graça recebida. Segundo o autor, Calvino percebia alguns frutos e resultados dessa graça de um modo positivo e abrangente, posto que estes dons vieram a produzir “ideias divinas disfarçadas nos textos dos filósofos”, e uma “boa ordem e justa disciplina” nas reflexões desenvolvidas pelos juristas da antiguidade, sendo este, um princípio central da valorização dedicada pelo calvinismo para as artes e a ciência na história. (p 156, 2004). Ao tratar do pensamento dos reformadores acerca do Estado, Strohl ressalta que João Calvino foi aquele que mais se dedicou ao tema, vindo a definir que deveria ocorrer uma real distinção entre as instituições do Estado e da Igreja. Pois o propósito de Deus é abençoar toda a humanidade através das delimitações das áreas de atuação destes dois poderes: “daí porque a “liberdade espiritual pode coexistir com a submissão civil, e o poder temporal não é incompatível com o reino espiritual de Cristo.” Calvino destaca que a sociedade humana necessita do Estado, no interesse de que a ordem seja mantida num mundo que se encontra submetido ao pecado: “Os que desejam privar o homem desse amparo... necessário para sua peregrinação na terra... fazem violência à sua natureza humana”. Além deste aspecto, Calvino aborda o Estado de uma maneira mais ampla, como sendo uma instituição capaz de facilitar o desenvolvimento e ordenação da vida material dos homens, algo que, no entendimento de Strohl, propõe um “certo indício da noção do Estado como instrumento da Providência, ao lado da noção de Estado.” (p 231, 2004). Conforme as funções do Estado, como sendo uma instituição criada por Deus para regular o bem na sociedade dos homens, o reformador ensina que o magistrado (governante) deve agir positivamente acerca da religião, posto que “a finalidade da ordem temporal é manter o culto público de Deus, a doutrina e a religião puras, e o bem geral da Igreja”. “Calvino desenvolve extensivamente a tese de que, segundo a Escritura e os filósofos, às autoridades civis cabe o dever de fazer observar “as duas tábuas da Lei”. (Strohl, p 232, 2004). O entendimento calvinista de que as autoridades são vigários de Deus nas suas diversas funções na sociedade, sejam eles reis, governadores ou chefes de grupos, orienta o modo como os fiéis devem acatar toda autoridade existente, mesmo que a monarquia seja a menos aceitável, conforme indica o pensamento dos “espíritos elevados”, de Aristóteles, Platão e Sêneca. Segundo Calvino, deve-se reconhecer “a providência de Deus no fato de que diferentes regiões são governadas por diferentes formas de autoridade.” Pois, “o melhor sistema de governo é aquele em que há liberdade adequada e durável”, com um destaque acerca da importância de que esse peculiar modelo de autoridade social seja preservado; sendo que “o primeiro dever daqueles que governam um povo livre é velar para que “a liberdade do povo, do qual são protetores, não se restrinja.” (Strohl, p 232-233, 2004). Em relação ao modo como as sociedades serão governadas através das leis, não se deve considerar dura e nem ruim qualquer ação repressiva, posto que as autoridades somente executam a justiça de Deus: “o Senhor entrega a espada aos seus ministros para que a usem contra os homicidas;... o Senhor detém a mão criminosa dos homens, mas não detém a sua justiça exercida pela mão dos governantes.” Nesse contexto, Calvino entende que a legislação e o ordenamento das leis escritas são “a alma de todas as repúblicas.” (Strohl, p 234, p 14-21, 2004). Strohl anota o aspecto em que Calvino rejeita a proposição do reformador Bucer, pois este entendia que as leis de um Estado cristão deveriam seguir as regras das ordens comunitárias definidas por Moisés. Acerca deste tema, Calvino faz uma distinção de entendimento e importância entre as leis moral e cerimonial; vindo a definir que o resumo da Lei moral dada por Jesus, deve ser reconhecida como sendo a “verdadeira e eterna regra de justiça válida em todos os lugares e em todos os tempos para todos os homens que desejam orientar sua vida pela vontade de Deus”. Nesse contexto, o calvinismo entende que as leis judaicas que asseguravam o ordenamento comunitário dos homens tinham o propósito de orientar uma “pedagogia dos judeus”. Portanto, no estabelecimento de sua estruturação social, cada nação deverá legislar através das regras que forem mais adequadas às suas sociedades, com destaque para a orientação de que essas leis não devem ser contrárias às leis morais eternas de Deus, “de tal modo que, embora assumindo formas diferentes, tenham todas o mesmo propósito” (p 15, 2004). Ao tratar dos fundamentos do Direito e das Leis, Calvino ressalta a importância do direito romano na história da humanidade, posto que suas bases foram orientadas sobre “o testemunho da lei natural e da consciência que o Senhor implantou no coração de todos os homens”. O pensamento calvinista entende que a lei natural está resumida na observância do princípio da equidade, o qual orienta que as mais diversas regras e ordens dadas pelas legislações em cada época da história resguardem sempre o objetivo principal da justiça. Nesse contexto, as penalidades dadas aos crimes de furto e homicídio poderão ser mais ou menos severas, “conforme as circunstâncias do tempo, do lugar e da nação”. (Strohl, p 235, 2004). Henri Strohl finaliza as considerações sobre o pensamento de Calvino acerca do Estado, ressaltando o valor de que as autoridades instituídas por Deus para manter a ordem e preservar o mundo não devem ser percebidas como um “mal necessário”, mas sim, devem ser acolhidas com a devida honra, atenção e obediência, conforme ensinam os apóstolos Paulo, em Romanos 13, e Pedro, em sua segunda carta, no capítulo 2. (p 236-237) João Calvino destaca a afirmação do Apóstolo Pedro, de que é mais importante obedecer a Deus do que aos homens, no propósito de orientar que nenhuma destas autoridades ou ordens de governantes seja reconhecida como tendo valor, caso atue contra a vontade de Deus: “Porventura Deus, ao entregar o governo a homens mortais, renunciou inteiramente ao seu direito?”. (p 239, 2004). CONSIDERAÇÕES FINAIS. “Por causa do Senhor, submetam-se a todas as autoridades humanas, seja o rei como autoridade máxima, sejam os oficiais nomeados e enviados por ele para castigar os que fazem o mal e honrar os que fazem o bem.” (1 Pedro 3.13-14) Para o pensamento calvinista reformado, o Estado é uma instituição criada por Deus em razão do pecado da humanidade. Serve para refrear o mal e livrar a sociedade do caos, e neste propósito e interesse, tem poder de justiça para manter a ordem através das leis civis. E como toda Autoridade de Estado foi instituída por Deus para proteger os que praticam o que é correto na sociedade, e para penalizar os desobedientes, compreendemos que as leis civis não deverão desprezar os valores morais dos mandamentos bíblicos; posto que o certo e o errado que Deus deseja regular na sociedade, deve ser coerente ao seu pensamento sobre o tema. 2. O ser humano e sua associação familiar e a cultural nas mais diversas áreas de ciências e artes, educação e esportes, religião e negócios geram instituições orgânicas; que servem para a humanidade fazer prosperar as capacidades e anseios naturais da vida social que o ser carrega em si. 3. Deus criou as Instituições sociais para orientar a Humanidade através das Autoridades. Todo homem que praticar o bem será protegido e quem fizer o mal será disciplinado; pois a Lei foi dada para ensinar o homem sobre o pecado que arruína a vida hoje, e condena o espírito na eternidade! Não matar e não roubar significa amar o próximo. 4. As Autoridades instituídas por Deus na família e religião, trabalho e comunidade, educação e sociedade devem ser respeitadas e apoiadas nos limites e amplitude de suas áreas. O Estado não é superior à Família, e a Educação não é superior à Religião, e vice versa, pois cada setor da existência tem sua área de ação social definida por seu próprio conteúdo técnico e existencial. 5. A supremacia do Estado sobre o espirito do homem e a consciência do ser não deve ser tolerada pelos cristãos, posto que essa instituição pode vir a afrontar as liberdades civis e individuais; enquanto também poderá atuar para limitar as liberdades de expressão e religiosa dos cidadãos, agindo na corrupção do propósito para que foi instituída por Deus. CONCLUSÃO: Sobre o tema da Missão Integral da Igreja acerca da Sociedade e Estado, o pensamento calvinista tem se revelado na história como o conteúdo doutrinário mais profundo e fiel às Escrituras, sendo o pensamento cristão mais abrangente acerca da Soberania de Deus, da Responsabilidade humana e da Vocação social da humanidade, no propósito de que ocorra o estabelecimento das bênçãos comuns e especiais do Senhor sobre a terra. (*Esse texto faz parte de um artigo com três tópicos, incluídos o pensamento de Calvino nas "Institutas" e o pensamento reformado de Abraham Kuyper, que foi publicado integralmente na Revista Teológica Fatesul, o qual pode ser acessado no link a seguir: http://fatesul.com/publicacoes/revista-teologica/) BIBLIOGRAFIA. BÍBLIA, Sagrada, NVT. 1 ed – São Paulo : Mundo Cristão, 2016. _______, de Estudo de Genebra. Editora Cultura Cristã, São Paulo, SP, 1999. CALVINO, João. A verdadeira vida cristã, 2001, SP. McGRATH, Alister E. Teologia, sistemática, histórica e filosófica. Uma introdução à teologia cristã. tradução Marisa K. A. de Siqueira Lopes. – São Paulo: Shedd Publicações, 2005 STROHL, Henri. O Pensamento da Reforma. Tradução Aharon Sapsezina. – 2 ed. – São Paulo : ASTE, 2004. AUTOR: Ivan S Rüppell Jr é Ministro presbiteriano, Mestre em Ciências da Religião e Advogado, atuando na Igreja Presbiteriana Olaria, em Curitiba/PR, e como professor na Fatesul.

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