terça-feira, 5 de março de 2024

SÍMBOLOS DE FÉ. Introdução Histórica. Reforma Protestante. Lutero e Zuinglio.

Esse texto contém longos trechos extraídos de livros no objetivo de apresentar conteúdo introdutório histórico e conceitual para a disciplina Símbolos de Fé, do Seminário Presbiteriano do Sul - extensão Curitiba. Esse conteúdo não deve ser utilizado fora dos objetivos de instrução e para o conhecimento dos alunos dentro de seus estudos no seminário. MOVIMENTO PROTESTANTE. CORRENTES DIVERSAS DO PROTESTANTISMO. INTRODUÇÃO HISTÓRICA. (extraído do livro, o Cristianismo e a civilização ocidental). Capítulo 4. As Reformas e a expansão do Cristianismo em meio ao surgimento e consolidação da Idade Moderna. (...) 4.2 A Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica. 4.2.1 A Reforma Protestante. “Comete-se injustiça contra a Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou mais tempo à indulgência do que à pregação da Palavra.” (Martinho Lutero, 1517). A Reforma Protestante da Igreja Cristã Ocidental foi um movimento do século 16 que buscou promover uma renovação das crenças e doutrinas, a partir da valorização de princípios e fundamentos oriundos somente da Bíblia, em detrimento das tradições, algo que relaciona este movimento religioso ao movimento cultural do Humanismo e sua ênfase no retorno às fontes. Os primeiros e principais líderes da Reforma Protestante foram Martinho Lutero, na Alemanha, Ulrico Zuínglio, na Suíça e João Calvino na França e cidade de Genebra, sendo que o ato simbólico inicial do movimento ocorreu em 31 de outubro de 1517, na cidade alemã de Wittenberg. Foi ali que o frade agostiniano Martinho Lutero apresentou publicamente as noventa e cinco teses, em que criticava a venda das indulgências que a Igreja administrava no propósito de oferecer o perdão de pecados aos homens, ao mesmo tempo em que serviam como uma forma de angariar riquezas para a instituição. A grande tese espiritual de Lutero era oriunda do texto bíblico da Carta aos Romanos do Apóstolo Paulo, e afirmava que o perdão e a salvação disponibilizados na Pessoa de Jesus Cristo aos pecadores eram um presente gratuito dado por Deus a todos que tivessem fé. O movimento da Reforma Protestante foi muito mais que um projeto de renovação da teologia e ética da igreja, vindo a realizar transformações sociais, políticas e econômicas diversas, as quais mudaram profundamente a sociedade europeia do século 16 e seguintes. Pois suas proposições doutrinárias acerca da religião do Cristianismo se propagaram por toda a Europa e Reino Unido, alcançando com grande vigor a região dos Estados Unidos da América a partir da emigração europeia no século 17. Um dado histórico interessante é que a palavra “protestante” começou a ser utilizada para denominar os seguidores de Lutero a partir do ano de 1529, quando príncipes e representantes de cidades alemãs decidiram “protestar” contra uma decisão conciliar da Igreja de Roma, que negava valor e buscou restringir o movimento luterano a partir daquela data. (McGrath, 2005, p 97) O contexto eclesiástico-institucional relacionado à Igreja, e o contexto religioso-espiritual mais relacionado aos fiéis, ambos geradores da Reforma Protestante como um movimento de divisão no seio da Igreja, serão melhor compreendidos a partir da seguinte cronologia histórica: no ano de 1379 o inglês John Wycliffe publicou um livro relatando os desvios da igreja e pedindo reformas, sendo que em 1415 o tcheco Jon Hus foi considerado herege e queimado por suas ideias que pediam reformas na instituição, até que Martinho Lutero publicou no ano de 1517 as 95 teses que deram início à grande divisão da Igreja no ocidente. Em 1520 começaram a ser celebrados cultos cristãos luteranos na cidade de Copenhague, enquanto que na Inglaterra o rei Henrique VIII se declarou chefe da Igreja Anglicana em 1534, até que no ano de 1536 o reformador e teólogo João Calvino começou a escrever as “Institutas da Religião Cristã”, vindo a liderar um grande movimento político e social de mudanças na cidade de Genebra. Finalmente, entre os anos de 1545 e 1563, a Igreja Romana organizou o movimento da Contrarreforma Católica, através das assembleias do Concílio de Trento. (Werner, 2017, p 160) Acerca do contexto histórico mais abrangente desta divisão da Igreja, sabe-se que um dos princípios religiosos que vieram a simbolizar o término da Idade Média e o início da Idade Moderna a partir da Europa Ocidental foi: “post tenebras lux” – “após a luz a escuridão”, pois a nova religião cristã apregoada pelos reformadores anunciava a chegada de um novo tempo em que as pessoas leriam a Bíblia em sua própria língua, o que as tornaria capazes de se relacionar com Deus diretamente, sem que houvesse a mediação dos sacerdotes e da instituição. (Fortino, 2014, p 237) Buscando refletir acerca da maneira como a religião pode influenciar as atitudes dos homens, vamos ficar atentos ao seguinte fato religioso e suas consequências sociais: assim que a Reforma começa a orientar que ocorra um relacionamento direto do cristão diante da Pessoa divina, também ocorre a oportunidade para que o fiel busque a Deus de forma mais pessoal no tratamento das inquietações de sua alma; algo que irá torna-lo alguém mais responsável pelas proposições éticas da fé, conduzindo-o para que se envolva mais diretamente na vida cotidiana da sociedade. Nesse contexto, o teólogo João Calvino assumiu a tarefa de organizar as doutrinas religiosas que tinham o propósito de “enviar” o cristão protestante integralmente ao mundo secular, pois a religiosidade cristã interior deveria ser vivenciada na realidade exterior da existência. O pensamento teológico de João Calvino definia uma visão religiosa que, segundo McGrath, “envolvia trazer toda a esfera da existência humana para dentro do âmbito da santificação divina e da dedicação humana.” (p 250) Eis, portanto, o aspecto religioso relevante de um movimento que orientou o protestantismo para atuar junto da sociedade; algo que, posteriormente, veio a ser a base de uma conduta que se tornou tema de um dos mais importantes estudos das ciências da religião, conforme foi desenvolvido no livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber , conforme analisamos no primeiro capítulo. 4.2.2 A Contrarreforma Católica. A Contrarreforma foi um movimento organizado pela Igreja Romana Ocidental no século 16 que tanto renovou, como fortaleceu as atividades eclesiais e as doutrinas religiosas do cristianismo católico ao final da Idade Média. É possível destacar duas atividades para exemplificar a maneira como a Igreja de Roma buscou reagir aos desejos que queriam renovar sua instituição, e aos confrontos oriundos da divisão que ocorria a partir do surgimento da Reforma Protestante. De um lado, houve uma autorização oficial e um apoio ostensivo do Papa para que a Sociedade de Jesus, ordem fundada em 1534 por Inácio de Loyola, pudesse fortalecer os princípios da Igreja por toda a Europa. De outro, a renovação do interesse pelas artes cristãs e o crescimento do estilo barroco na Itália, propiciaram que as edificações construídas nesse modelo e os ornamentos com esculturas e pinturas sagradas, se tornassem um veículo de propaganda do esplendor e da grandeza da igreja romana, o que ajudou o catolicismo a manter-se como religião dominante na Espanha e Itália. (Werner, 2017, p 163) Um dos motivos que levaram a liderança católica a organizar um Concílio na cidade de Trento a partir de 1545, e que com algumas interrupções, durou até 1563, foi o enfraquecimento da autoridade do Papa, o que fazia com que o catolicismo não tivesse uma unidade de pensamento central para orientar suas atividades e práticas. Sendo que era preciso tratar o quanto antes das questões relacionadas aos desvios e à corrupção do clero, ao mesmo tempo em que se fazia necessário responder aos questionamentos e críticas levantados pelos protestantes acerca da igreja romana. Nesse contexto, durante mais de dezoito anos a Igreja se manteve em Concílio a fim de deliberar sobre as questões que julgava necessário explicar e redefinir acerca das doutrinas e dogmas católicos, a fim de que houvesse um esclarecimento para o clero e uma boa orientação aos fiéis sobre o modo como a igreja deveria atuar depois da divisão. Algumas das decisões tomadas pelo movimento da Contrarreforma foram: - a proibição da leitura de textos contrários ao pensamento católico, especialmente os livros de Erasmo, Lutero e Calvino, além da tradução em grego da Bíblia, já que somente a Vulgata (versão em latim) era considerada como texto oficial da fé católica; - o início da construção de novas igrejas em diversas regiões da Europa e a organização de um espaço apropriado nos templos para que a mensagem dos sermões pudesse ser ministrada aos fiéis; e, ainda, - a atuação da Inquisição no sentido de agir como um tribunal de julgamento de todos que fossem considerados hereges na perspectiva católica. (Fortino, 2014, p 237) As decisões do Concílio de Trento foram capazes de esclarecer o pensamento da Igreja Romana sobre diversos temas doutrinários importantes e acerca do modo como a educação e as missões católicas deveriam ser desenvolvidas pela Igreja, sendo que essas decisões vieram a fortalecer suas atuações na sociedade europeia e outros continentes no decorrer dos séculos seguintes. Segundo Chadwick, o concilio iniciou com interesses distintos, pois enquanto uma ala política desejava tratar dos abusos da igreja e buscava ter liberdade para negociar temas doutrinários junto aos protestantes; o Papa buscava oficializar a doutrina católica tradicional, que foi o que acabou ocorrendo ao final das assembleias. De tal forma que ao final do Concílio era possível perceber com clareza o que significava ser um cristão católico, em contrariedade ao que estava sendo defendido pelo protestantismo. A Igreja Romana saiu de sua assembleia com um programa de organização interna e atividades externas amplamente definido, sendo que a função de cada membro do clero foi esclarecida, além da maneira como deveria ocorrer a educação dos fiéis, que seria pela catequese (discipulado) e através das mensagens dos sermões. (2007, p 106) Nesse contexto histórico em que as lideranças da Reforma Protestante e da Igreja Católica Romana estavam definindo os posicionamentos que as distinguiam, eis que se iniciou na Europa um período de conflitos que se prolongaria por décadas, as chamadas “guerras religiosas” , sendo que estas batalhas colocaram em lados opostos súditos e governantes, reis e príncipes, enquanto as nações e povos da região se atacavam mutuamente. No entanto, a centralidade da Europa nos acontecimentos fundamentais do século 16 relacionadas ao Cristianismo e ao início da Idade Moderna não se resumem à divisão da Igreja Ocidental a partir da Reforma Protestante, pois a Espanha da rainha católica Isabel e do navegante Cristóvão Colombo se tornaram os pioneiros de um período histórico que foi denominado de a “Era dos conquistadores”." (fim: texto extraído do livro, O Cristianismo e a Civilização Ocidental, Ruppell e Turetti). A REFORMA PROTESTANTE. LUTERO E ZUINGLIO. AS REFORMAS NA ALEMANHA E SUIÇA. (extraído do livro, Revolução Protestante, de Alister McGrath). "O nome de Martinho Lutero domina os relatos mais populares das origens e do desenvolvimento do protestantismo. Por volta de 1519, o nome de Lutero começava a ficar mais conhecido, em especial, nos círculos humanistas... Lutero estava para ser saudado como o principal representante do caso da reforma da igreja e poderia atrair apoio até mesmo de luminares como Erasmo de Roterdã. Todavia, por volta dessa época, outros movimentos reformistas pipocavam em outros lugares da Europa, inicialmente, sem nenhum conhecimento das atividades e das aspirações de Lutero. Fica claro que, na década de 1510, iniciativas reformistas não coordenadas estavam surgindo em muitas partes da Europa, com frequência em resposta às situações locais ou inspirados por heróis locais. Muitas das grandes cidades europeias tornaram-se epicentro de movimentos reformistas que respondiam a situações locais e tratavam de situações locais. Recentes estudos acadêmicos, enfatizando a heterogeneidade intelectual e sociológica da primeira fase da Reforma, deixa praticamente impossível pensar na Reforma como um único movimento coerente." (Mcgrath, 2012, p. 65-67). A HETEROGENEIDADE DO PROTESTANTISMO PRIMITIVO. "A Reforma é mais bem concebida como uma série de movimentos reformistas, inicialmente independentes, com programas e compreensões da natureza da teologia e seu papel na vida da igreja bem distintos. Por meio da complexa rede de intercâmbio de pessoas, correspondência e publicações características dessa época, esses movimentos originalmente independentes chegaram a alcançar, pelo menos, um grau parcial de alinhamento ao longo da década seguinte... Em um processo intrincado e não totalmente compreendido de reavaliação, de reorientação e de reapropriação, a Reforma emergeria com o tempo. O conceito de "protestantismo" surgiu da tentativa, no início do século 16, de ligar uma série de eventos a fim de formar uma narrativa comum de transformação. Para o historiador, nunca existiu algo chamado "protestantismo"; antes, houve diversos movimentos, cada um com seu distinto programa regional, teológico e cultural.... Conforme esses movimentos começaram a se localizar em um mapa histórico e conceitual, cada um deles veio a se identificar cada vez mais em termos do que era percebido como um grande movimento extremamente abrangente. Um sutil processo de realinhamento levou a um crescente senso de identidade institucional e intelectual. Contudo, essa identidade, de início, foi concebida principalmente em termos de dois movimentos - a Reforma Luterana, no nordeste da Alemanha, e a Reforma Zuingliana, no leste da Suiça. A noção de que esses dois movimentos eram os dois lados da mesma moeda protestante representa uma retroprojeção posterior feita pelos historiadores e apologistas protestantes. Portanto, a sugestão de que existe uma noção universal chamada "protestantismo" deve ser vista com considerável cautela...". (Mcgrath, 2012, p. 67). "... Protestantismo designa uma família de movimentos religiosos que compartilham determinadas raízes históricas e fontes teológicas. Lutero... é uma dessas fontes. Conforme veremos, o protestantismo desenvolveu-se em uma entidade coerente por meio de uma história intrincada de negociações e de concessões ocorridas no final da década de 1520 e na década de 1530, período durante o qual, com frequência, não estava claro quem estava "dentro" e quem estava "fora", sem falar qual seria o resultado final. Tudo estava em situação de constante mudança, e os vários movimentos reformistas da época não compartilhavam um claro senso comum de conjunto de crenças, de valores ou de formas de interpretar a Bíblia. Dorothea Wendebourgh, em um estudo muitíssimo perspicaz sobre a Reforma, argumenta que a "unidade" da Reforma emergiu retrospectivamente, em especial em resposta à crítica católica posterior do movimento. O protestantismo desenvolveu seu senso de identidade principalmente em resposta às ameaças e às críticas externas, mais do que como resultado das crenças compartilhadas." (2012, p. 68). WITTENBERG. "A Reforma em Wittenberg, no início da década de 1520, foi centrada em três indivíduos dinâmicos e carismáticos muito diferentes: Martinho Lutero, Andreas Bodenstein von Karlstadt e Thomas Muntzer. Lutero, graças a seu perfil público, era, sem dúvida, o representante mais vísivel e mais conhecido do movimento reformista na Alemanha. Não obstante, suas ideias não eram aceitas por todos, nem mesmo em Wittenberg. Karlstadt e Muntzer achavam Lutero conservador demais, os dois estimularam-no a adotar programas mais radicais de reforma." (2012, p. 68). A ALTERNATIVA SUIÇA. ZUINGLIO E A CIDADE DE ZURIQUE. "Durante a década de 1520, os movimentos reformistas surgiram em muitos territórios e cidades da Europa Ocidental. Nossa história aqui diz respeito a um sacerdote que celebrou seu 35 aniversário no dia de Ano Novo de 1519, sendo instituído "sacerdote do povo" na Grande Catedral da cidade suiça de Zurique. Ulrico Zuinglio (1484-1531) jamais alcançaria a fama de Lutero e, hoje, ocupa lugar abaixo de Lutero e de Calvino. em termos tanto de suas ideias como de suas atividades. Não obstante, ele desempenhou papel vital e importante no início e no direcionamento do surgimento da Reforma na Suiça - reforma que tem pouca relação com a de Lutero. Naquela época, a Suiça era muito menor que hoje. O nome "Suiça" é baseado em um dos três cantões originais - Schwyz, Uri e Unterwalden - que assinaram um tratado de defesa mútua contra os austriácos em 1291. Essa confederação, conhecida como Confederação Helvética, foi ampliada gradualmente. Em 1332, Lucerna juntou-se à confederação, seguida de Zurique (1351), de Glarona e Zugo (1352) e de Berna (1353)... Em 1481, o cantão de Soleura e de Fribourg juntaram-se à confederação, elevando a membresia total para dez cantões. Em 1501, Basileia e Schaffhaunsen juntaram-se à confederação, seguidos de Appenzell em 1513. Zuinglio nasceu no dia de Ano Novo de 1484 no vale do Toggenburg, no cantão de Saint Gallen, na parte oriental da Suiça moderna... Ele foi educado na Universidade de Viena em uma época na qual as antigas ideias escolásticas estavam sendo substituídas pelas humanistas. Na época em que Zuinglio retornou para a Suiça, ele estava familiarizado com o "novo aprendizado" e ansioso para usa-lo reformando a igreja. Ele ligou-se a grupos humanistas da Suiça oriental que trabalhavam pela renovação da igreja, pelo avanço do pacifismo e pelo desenvolvimento de uma Suiça que fosse a "república das letras". Zuinglio, como muitos de sua época, foi cativado pela percepção humanista de Christianismus renascens - um cristianismo que renasceria restaurado à simplicidade e à vitalidade da era apostólica." (p. Mcgrath, 2012, p. 71-72). "Zuinglio, em comum com outros que começaram a pensar a respeito de reforma por volta dessa época (metade da década de 1510), via a Bíblia - ou mais especificamente o Novo Testamento - como central para seu programa de renovação. Contudo, Zuinglio, como muitos reformistas da Suiça oriental, não via necessidade de mudanças fundamentais no que a igreja acreditava. Sua percepção da reforma era principalmente institucional e moral: a igreja precisava retornar aos caminhos simples do Novo Testamento e se comportar de acordo com os ensinos morais de Cristo. O Novo Testamento tinha de ser valorizado por seu claro ensinamento a respeito do discipulado e da ética cristãos. A Reforma dizia respeito à igreja e seus membros remodelarem sua vida à luz desse ensinamento. No dia seguinte a sua chegada em Zurique em 1519, Zuínglio anunciou sua intenção de iniciar uma nova abordagem em seus sermões. Ele propôs fazer uma série contínua de sermões sobre o evangelho segundo Mateus. Ele, em vez de depender de comentários bíblicos, basearia seus sermões diretamente no texto escritural. Para Zuinglio, a escritura era um texto vivo e libertador por meio do qual Deus falava com seu povo e o capacitava a se libertar da escravidão de falsas ideias e práticas... Aqui, o contraste com Lutero é contundente. Zuinglio, assim como o reformista do século 14, John Wycliffe, via a Bíblia estabelecendo os mandamentos divinos para o comportamento do homem. Estes tinham de ser contrapostos às ordens humanas do papado e do Estado, que não tinham a mesma autoridade divina. A própria tarefa de educação cristã tinha de assegurar que as pessoas ficassem conscientes dessas exigências divinas e respondessem de forma apropriada a elas. Todavia, para Lutero, a Bíblia dizia respeito principalmente às promessas de Deus - coisas que Deus ofereceu fazer pela humanidade, e não coisas que Deus esperava que a humanidade fizesse (curiosamente, parece que muitos o interpretaram erroneamente a respeito desse ponto e o reverteram em ideias semelhantes às de Wycliffe). O programa de reforma de Zuinglio não faz referência à doutrina central de Lutero de "justificação só pela fé". Na verdade, muitos estudiosos veem uma evidente tensão entre a compreensão moralista da reforma de Zuinglio e a ênfase de Lutero na graça de Deus." (Lutero tolerava imagens religiosas nas igrejas e em Zurique foi determinado que todas deveriam ser removidas em 1524). (p. 72-73). "É importante observar que Zuinglio, em todo o período formativo de seu desenvolvimento como reformista, parece não ter tomado conhecimento de Martinho Lutero e também não foi influenciado por ele. A abordagem distintiva de Zuinglio da reforma da igreja refletia correntes de pensamento características da Suiça oriental da épóca. Em comum com Lutero e Erasmo, Zuinglio defendia que a igreja precisava se realinhar com a Bíblia. Contudo, a compreensão de Zuinglio de como esse processo devia acontecer e de que forma tomaria tem pouca relação com a de Lutero e estava muito mais próximo da percepção de Erasmo da reforma institucional e moral baseada em um programa educacional fundamentado nos clássicos e no Novo Testamento." (Zuinglio reflete que a Bíblia poderia produzir e mover a interpretação válida de si mesma, vindo se unir a Erasmo no modo em que a interpretação da bíblia deveria ocorrer mediante o estudo das línguas hebraica e grega e na devida observação das figuras literárias, para alcanaçar o "sentido natural da Escritura"). Ele (Zuinglio), como Lutero, sustenta que, além da Bíblia, a igreja não tem outra autoridade." (p. 73-74). Lutero e Zuinglio divergiam sobre o modo de interpretar a Bíblia, sendo que a controvérsia sobre a "presença real" de Cristo demonstra essa distinção. Lutero criticava o entendimento "aristotélico" da doutrina medieval católica da transubstanciação, porém, entendia que o corpo de Cristo era transmitido de alguma maneira por meio ou sob os elementos do pão e vinho. Zuinglio entendia que a expressão "isto é o meu corpo" aponta ou representa o corpo, de forma que o pão da ceia "é um símbolo do corpo de Cristo da mesma forma que o vinho simboliza seu sangue. Cristo, desse modo, é lembrado em sua ausência, e seu futuro é antecipado." (p. 74). Nesse contexto, vai surgir a questão sobre "quem" tem autoridade para interpretar a Bíblia, de modo que uma autoridade superior deveria ser indicada, algo que seria uma blasfêmia para o protestantismo. "Os três principais reformistas - Lutero, Zuinglio e Calvino - reconheciam a importância da questão; cada um deles, de forma relevante, ofereceu uma resposta distinta." Em meio a essa controvérsia, a cidade de Zurique definiu que a decisão da interpretação da Bíblia em casos com esse seria uma questão local: "O conselho da cidade, vendo-se como o corpo representativo devidamente eleito dos cristãos de Zurique, declarou ter o direito corporativo de decidir a questão da interpretação da Bíblia... Essa foi uma abordagem que agradou aos conselhos das cidades de toda a região pela qual a Reforma começava a se espalhar. A autoridade religiosa para eleger representantes do povo foi transferida do papa ou do bispo local. Essa transferência de autoridade era ainda outro exemplo da "democratização da fé", tão característica da reforma que estava acontecendo na época, e abria espaço de bastante relevância para o conselho da cidade da "comunidade sacra" urbana." A decisão levantou uma questão crucial, como a de que forma iria se resolver uma interpretação da bíblia em que os conselhos distintos das cidades de Zurique, Basileia, Berna e Constança viessem a discordar um do outro? Era um contexto em que o poder espiritual de um conselho estaria ligado igualmente ao poder político acerca do tamanho e posse dos territórios daquela cidade, no entanto, Zuinglio estava envolvido em diversas questões em que desejavam que ele criasse uma instituição religiosa mais rígida, enquanto ele agia mais livremente, inclusive vindo a se casar; porém, foi um período em que surgiram igualmente na região algumas tentativas de reforma mais radicais, em meio a ameaças de exclusão e conflitos; sendo que um dos temas doutrinais desafiadores surgiu da negação sobre a justificação bíblica para o batismo, levantado por Manz, aliado próximo de Zuinglio. "Todavia, esse desafio interno em Zurique à forma de protestantismo de Zuinglio logo foi substituido por uma ameaça externa muito mais séria. Os cinco cantões suiços católicos, cada vez mais alarmados com o crescimento do protestantismo na região, declararam guerra a Zuinglio em outubro de 1531. Nenhum cantão protestante ofereceu apoio a Zurique, deixando a cidade enfrentar seus oponentes sozinha. Zuinglio serviu como capelão no exército de Zurique, liderado com imperícia por Georg Goldli na crítica batalha de Kappel. (Os protestantes eram emboscados em sua retirada, vindo a ser abandonados feridos e mortos na batalha, situação em que o próprio Zuinglio veio a falecer no conflito). A cidade de Zurique teve que se submeter a acordos desfavoráveis e perdeu seu líder religioso, com diversas regiões suiças deixando o protestantismo para retornar ao catolicismo, sendo que Bullinger deixou Bremgarten para assumir a vaga de Zuinglio em Zurique, ao mesmo tempo em que essa cidade perdia prestígio e influência no movimento protestante, enquanto outras regiões surgiam para ocupar seu lugar. (Mcgrath, 2012, p. 75-77). REFERÊNCIAS. McGratgh, Alister. Revolução protestante. uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje. tradução Lena e Regina Aranha. Brasília, DF : Palavra, 2012. Ruppell, Ivan Jr e Turetti, Marli. O Cristianismo e a Civilização Ocidental, Editora Intersaberes, Curitiba, 2020. Autor. Ivan S Rüppell Jr é professor, advogado e ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, atuando na gestão de ações sociais da igreja.

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