sexta-feira, 12 de agosto de 2022

COSMOVISÃO REFORMADA. Aula 5. O Pensamento de Calvino. Princípios de uma Cosmovisão Reformada.

A doutrina cristã que iniciou na história a formatação de uma Cosmovisão Reformada surgiu a partir do pensamento e reflexões do lider protestante João Calvino, no século 16. Iremos apresentar nessa aula, textos baseados em seu pensamento acerca da vocação do cristão diante da sociedade e cultura, a partir do princípio da soberania de Deus sobre o cosmos e história, no interesse de oferecer fundamentos de uma cosmovisão bíblica reformada aos cristãos, em sua vivência no mundo. INTRODUÇÃO. Comentário de Calvino, sobre sua obra, As Institutas da Religião Cristã: “Meu objetivo nessa obra é preparar e treinar estudantes de teologia para o estudo da palavra de Deus, para que possam ter um fácil ingresso no estudo dessa palavra e sejam capazes de lhe dar continuidade sem obstáculos.” (João Calvino) (McGrath, p 111, 2005). O maior pensador da Reforma Protestante desenvolveu um valioso tratado religioso ao apresentar os conteúdos do Cristianismo num modelo que valoriza a teologia bíblica, ao mesmo tempo em que comunica de modo sistêmico, coerente e sequencial as doutrinas cristãs. Nas palavras de Alister McGrath, “o único princípio que parece nortear a forma como ele organizou seu sistema teológico é, por um lado, a preocupação de ser fiel às Escrituras e, por outro lado, a obtenção de máxima clareza possível na apresentação dos temas.”(p 103, 2005) Na apresentação da introdução ao livro de J. Calvino, “A verdadeira Vida Cristã”, o teólogo Ricardo G. destaca o seguinte aspecto hermenêutico acerca do reformador: “Calvino foi um exegeta notável, tornando-se o mais importante modelo da aplicação do método histórico-gramatical... Calvino insistia ainda na unidade e harmonia do ensino bíblico, evitando assim o erro tão comum em nossos dias de interpretar um referido texto alienado de seu contexto canônico-teológico.” (p 6, 2001) O interesse constante por resguardar o ensino divino existente em cada um dos versos bíblicos, aliado ao propósito de anunciar tal verdade conforme o contexto geral da revelação das Escrituras, fez com que os comentários e, especialmente, “As Institutas” de Calvino, viessem a se tornar um conteúdo teológico ímpar no Cristianismo, devido à profundidade e abrangência de suas formulações. CONTEÚDO. FUNDAMENTOS. Vamos apresentar nesse tópico a visão reformada de Calvino acerca da Sociedade e Estado, para visualizar seu entendimento sobre a vocação cristã na área da cidadania e cultura. “É suficiente que saibamos que a vocação de Deus é como um princípio e fundamento baseados no qual podemos e devemos governar bem todas as coisas (...) Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não poderá haver clara consonância e correspondência entre as diversas partes de nossa vida.” (João Calvino) (Institutas, p 225, 2006). Segundo o conteúdo das “Institutas”, o entendimento do pensamento de Calvino acerca da responsabilidade do cristão perante a sociedade requer o destaque do modo como o reformador definia a maneira em que a humanidade seria capaz de adquirir algum conhecimento verdadeiro da realidade. Para Calvino, a sabedoria verdadeira acerca da existência consiste no conhecimento que temos de Deus, e no conhecimento que temos de nós mesmos, segundo a revelação de Deus, pois somente assim iremos anotar um entendimento real de nossa natureza. Sendo que “conhecer a Deus” significa saber que Ele é nosso Criador, além de ser o sustentador de tudo que há através de sua providência, governando a história com sabedoria, justiça e cuidado amoroso.” (Wiles, p 25, 1994). O PRIMEIRO conhecimento bíblico que adquirimos ao olhar para Deus aponta o princípio com que Deus governa a história e a sociedade dos homens, o qual irá indicar aos cristãos o modo em que devem perceber e praticar a sua responsabilidade de mandato social. Para Calvino, ao governar a humanidade através de sua providência, Deus revela sua bondade aos justos e sua severidade aos ímpios, sendo necessário salientar que há crimes que recebem castigos hoje, enquanto outros serão castigados apenas no futuro. (Wiles, p 34-35, 1984). Observe que o conhecimento desse princípio da Providência irá nos ensinar o conteúdo mais amplo acerca do modo como Deus é o Criador do Universo, dando-nos a compreensão da maneira como Ele sustenta, governa e preserva tudo que existe, movendo toda providência segundo o seu poder. Portanto, a filosofia e razão dos homens que define Deus como sendo apenas a causa primária da criação, vai limitar o nosso conhecimento da providência, enquanto também nos fará desprezar a bondade que o Senhor dedica a todas as suas criaturas. (Wiles, p 87-89, 1984). UM SEGUNDO ASPECTO importante de nossa compreensão do tema, é descobrir que no instante em que Deus governa todas as coisas pela sua providência, Ele vai atuar na história através de causas secundárias, como também, sem estas causas e até contrariamente a elas. Ele é o Soberano Senhor! Calvino utiliza o conselho bíblico de Salomão em Provérbios 16.9, para expor o modo como os decretos da governança de Deus sobre a existência não devem nos impedir de assumir uma atitude de “providência pessoal” no dia a dia. Pois foi o próprio Deus que nos deu tanto a responsabilidade de cuidar de nossas vidas, como igualmente nos capacitou com tudo que é necessário para preserva-la, já que nos orienta a prever perigos, agir com precaução e utilizar remédios. Portanto, ao perceber que os seres humanos se tornam uma das “causas secundárias” da providência pelas quais Deus governa a terra, devemos assumir a responsabilidade de zelar por nossas vidas, usando os meios fornecidos pelo Senhor, a fim de não sermos negligentes neste conhecimento. Nesse contexto, assim que o cristão reconhece que tudo está debaixo da ordenação de Deus, também dedica o devido valor e atenção às causas secundárias, sabendo que os meios cotidianos de cuidar de sua segurança foram dados pelo Senhor. A partir disso, irá utilizar os meios divinos como instrumentos da providência do Senhor para cuidar da humanidade, vindo a abraçar e assumir, tanto sua dependência de Deus, como a sua responsabilidade no mandato social cristão diante do mundo. (Wiles, p 95-98, 1984). Estes dois elementos do Governo de Deus sobre a Terra revelam tanto o cuidado do Senhor sobre a história, como a responsabilidade dos cristãos, já que estes recebem de Deus um mandato para atuar na sociedade dos homens. Afinal, o Senhor irá agir no mundo a partir da vida e personalidade de cada fiel, que irão servi-lo como agentes das “causas secundárias” de sua Providência. Um terceiro aspecto da governança bendita de Deus sobre o mundo surge no conhecimento da importância de sua lei moral, como sendo um elemento utilizado para instruir o homem, resguardar a sociedade do mal e propor o conhecimento da necessidade do Evangelho para a salvação de todo aquele que crê! SEGUNDO CALVINO, a Bíblia ensina que a lei moral de Deus tem três propósitos na história da humanidade e sociedade dos homens. Em primeiro lugar, o teólogo entende que a lei moral divina serve para anunciar e formalizar a culpa de todo homem diante de Deus, no objetivo de gerar temor nos seres humanos, algo que irá conduzi-los a buscar o conhecimento da misericórdia do Senhor; conforme se anuncia no Evangelho de Jesus Cristo. A LEI MORAL de Deus serve, então, para revelar a justiça de Deus, pois somente esta convence o homem de sua própria injustiça. Sendo que, somente os padrões da moralidade divina são capazes de demonstrar ao homem o seu estado de fraqueza e de condenação; conforme explica o Apóstolo Paulo: “pois eu não teria conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás.” E, conforme Agostinho, “a lei serve para convencer o homem da sua fraqueza e a compeli-lo a orar pela graça curadora que há em Cristo.” (Wiles, p 149, 1984). Esse é um aspecto relevante acerca da responsabilidade social do cristão, pois a sociedade dos homens somente terá conhecimento da justiça do caráter de Deus, caso os cristãos venham anunciar tal verdade moral, mediante toda cultura e política, artes e educação que tiverem sob sua responsabilidade para praticar e desenvolver socialmente. O SEGUNDO elemento de importância da LEI MORAL divina orienta que ela serve para Deus governar a história pela sua Providência, no propósito de refrear a maldade dos atos dos homens que não se preocupam com o que é certo e com o que é errado. A lei moral de Deus serve para reprimir os homens através de freios e limites, como uma retidão necessária à toda humanidade, pois se não existisse esta proteção e resguardo da sociedade, o mundo se tornaria um lugar totalmente selvagem. Esse segundo aspecto complementa a responsabilidade social dos cristãos enunciada no primeiro, revelando o modo como leis civis originárias de valores cristãos irão oportunamente refrear a natureza humana na sociedade, segundo os padrões da justiça e moralidade de Deus. UM TERCEIRO aspecto importante do anúncio da lei de Deus é que a sua instrução é útil para ensinar os cristãos qual é a vontade de Deus para eles, como um elemento de apoio na sua jornada existencial. Pois o Espírito de Deus vive hoje em seus corações, a fim de conduzi-los no conhecimento e obediência dos mandamentos do Senhor. (Wiles, p 149, 1984). OUTRO ELEMENTO surge a partir de um olhar mais amplo acerca da existência, indicando a forma em que a lei moral divina se torna o instrumento utilizado para gerar um bom conhecimento da Pessoa de Deus, à toda humanidade. Pois a lei moral de Deus constrange os homens a adora-lo, enquanto também os conduz à humildade, sobre si mesmos. Calvino esclarece que a própria consciência do ser destaca a maneira em que os princípios morais de Deus foram escritos no interior e coração do homem. No entanto, somente a lei divina irá dar um testemunho claro e seguro acerca do certo e errado para a humanidade, já que a lei interior é insuficiente para fazer isso, em razão de nossa ignorância e vaidade. Nessa situação, os homens poderão admitir que estão longe da vontade de Deus, a cada vez que puderem comparar as suas vidas diante das exigências da lei, algo que também irá conduzi-los a buscar a misericórdia divina como um recanto de segurança. (Wiles, p 151-153, 1984). Após destacar os três aspectos de importância da lei moral bíblica no exercício do governo da Providência sobre a humanidade, e após esclarecer o valor da lei perante a consciência do homem, a fim de também convoca-lo a conhecer a misericórdia de Deus no Evangelho; Calvino apresenta o modo como os 10 Mandamentos são os fundamentos da Lei moral de Deus na história. O REFORMADOR entende que os 10 MANDAMENTOS representam uma justiça interior e espiritual, pois seus princípios alcançam os pensamentos do coração do homem. Esse aspecto fundamenta o modo como o Senhor Jesus veio resumir toda a lei em dois atos: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Mateus 22.37, Lucas 10.27). Nesse contexto, em que os princípios morais dos 10 mandamentos são os fundamentos da Lei do amor de Jesus, Calvino enfatiza a superioridade do padrão moral e relacional da lei de Deus na sociedade, como sendo os mais excelentes valores e princípios que deverão reger e orientar a vida dos homens. Assim, todo conteúdo da justiça de Deus deve ser percebido como um código de boas obras completos, posto que não haveriam quaisquer outros conhecimentos e virtudes capazes de superar aqueles que nos foram descritos por Moisés e Paulo. Entendimento que faz o Apóstolo afirmar que “toda a lei se cumpre em uma só palavra, a saber, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gálatas 5.14). O conteúdo moral dos mandamentos enfatizado no resumo da lei dada por Jesus, traduz os valores que devem nortear a verdadeira obediência aos mandamentos de Cristo; sendo um conhecimento que deve ser oferecido e vivenciado de maneira ampla perante a humanidade, conforme o ensino da parábola do Bom Samaritano. (Wiles, p 153-164, 1984). Calvino recorda a importância de nos relacionarmos perante a humanidade segundo os padrões morais de Cristo, pois as exortações morais provenientes dos filósofos nos mandam viver a vida conforme é apropriado à natureza humana. Algo impróprio para ser praticado ou defendido pelos cristãos, já que afora o fato de somente as Escrituras ensinarem o exemplo de Jesus aos homens, todos aqueles que seguem o conteúdo dos filósofos não irão carregar ou ensinar nada de Cristo, além do título. Para Calvino, a doutrina dos filósofos orienta a maneira em que o homem será governado pela razão, enquanto que a filosofia cristã afirma que a nossa racionalidade deve estar submetida ao Espírito Santo, no propósito de que possamos viver em Cristo, e não mais, em nós mesmos. (Wiles, p 237-239, 1984). Citação final: “Se houve qualquer movimento religioso, no século 16, que tenha tido uma atitude afirmativa em relação ao mundo, esse foi o Calvinismo.” (Alister McGrath) (p 249, 2005). Nessa análise, percebemos a importância da lei moral de Deus no mandato social dos cristãos, pois, toda vez que um cristão for atuar socialmente, seja como pai/mãe e cidadão, professor e autoridade, legislador e governante, profissional e funcionário público, ele deverá fazê-lo tendo em vista a sua responsabilidade de ajuntar com Deus, nos atos constantes da Providência bendita com que o Senhor preserva o mundo dos homens, além de estar atento para anunciar as verdades daquela justiça eterna, que se encontra somente no Evangelho de Cristo. ACERCA DA VOCAÇÃO CRISTÃ na perspectiva Reformada para a Sociedade, segue o destaque de alguns princípios bíblicos, conforme descritos pela Bíblia de Genebra, na nota teológica supra citada, “Os Cristãos e o Governo Civil.” Quando a Igreja é orientada a não ditar os programas de ação dos governos, isso se refere à separação entre Estado e Igreja, conforme orientada por Jesus e o Apóstolo Paulo; o que ensina a importância do Estado Laico, que requer ocorra uma distinção entre as instituições do estado e da igreja. Os comentários sobre a moralidade de governos como sendo uma responsabilidade das igrejas, conduzem os cristãos à ação política, a fim de que atuem na plenitude de sua capacidade de cidadãos. Que se apresentem como candidatos aos cargos do Legislativo e Executivo, e procurem votar em candidatos que irão representar seus valores e princípios morais, tanto na feitura das leis civis, como na governança do Estado. O cristão que deixa de assumir a cidadania política será alguém irresponsável perante Deus no exercício de sua Vocação, pois irá abandonar a sociedade dos homens ao acaso de outros princípios e valores, que não serão os bíblicos. Tal desobediência irá conduzir a sociedade a um destino cada vez mais selvagem e enganoso, além de atrapalhar a Igreja na missão de evangelizar a Terra através do anúncio das Boas Novas, já que o desconhecimento da Lei na sociedade impede a busca do arrependimento de pecados para a salvação eterna. Nessa perspectiva, a abordagem enunciada pela interpretação da Missão Integral da Igreja dada na Bíblia de Genebra, acerca dos temas essenciais do Estado e Sociedade, demonstra como o pensamento calvinista tem se revelado na história como sendo o conteúdo doutrinário mais profundo e fiel às Escrituras; sendo o pensamento cristão mais abrangente acerca da Soberania de Deus, da Responsabilidade humana e da Vocação social da humanidade, no propósito de que as bênçãos comuns e especiais do Senhor sejam estabelecidas sobre toda terra. O PENSAMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DE CALVINO, André Biéler. Vamos abordar agora, citações de Calvino e anotações do pesquisador André Bieler, como um conteúdo que venha ampliar e interessar os leitores, para a riqueza e abrangência das reflexões bíblicas de João Calvino sobre a Cosmovisão Reformada para a vida do cristão em sociedade. "O movimento da Reforma em Genebra é antes de tudo um movimento religioso que diz respeito à fé, seja dos indivíduos, seja da comunidade. Não é senão em consequência desta fé que a Reforma repercute - necessária, mas secundariamente - na vida social e política." (Biéler, p 105, 1990). "A redenção do mundo por Jesus Cristo se realiza, então, no universo como um todo e sua natureza; o alvo primário desta ação de Deus, porém, é a restauração da humanidade. É este o aspecto da obra de Cristo que desejamos considerar agora. Que significa esta restauração para a vida da sociedade? (...) A Igreja constitui entre os homens uma sociedade nova, uma comunidade no seio da qual as relações humanas originais são restauradas por Jesus Cristo; através desta comunidade tende a Igreja à restauração parcial da sociedade humana autêntica. (...) Na comunidade cristã as relações sociais naturais são-no na perspectiva da restauração." (p 334-335, 1990). "É também pela vontade de Deus, e por sua Providência operando por Jesus Cristo, que a economia primitiva da sociedade, corrompida pelo pecado dos homens é, a despeito de tudo, mantida até o fim dos tempos." (* "Não há pessoa tão embotada nem tão pobre de espírito, desde que se digne abrir os olhos, que não veja que é por admirável providência de Deus que os cavalos e os bois prestam serviço aos homens... E quanto mais evidente se nos faz este domínio todas as vezes que comemos ou fruímos de outros proveitos, tanto mais nos é de mister admirar a bondade e a graça de nosso Deus." Calvino, comentário aos livro de Salmos apud Biéler). (p 341, 1990). "A igualdade espiritual que reina e impera na Igreja não suprime, pois, a legitimidade de uma ordem política e social provisória onde as funções são diferenciadas e hierarquizadas. (...) Pode parecer que a moral social reformada seja favorável à conservação de uma ordem social estática. Não o é. O Evangelho, ao contrário, é uma força dinâmica, sempre tendendo a reformar a ordem estabelecida, para transformá-la em uma ordem mais justa, pois que, não importa qual ordem, está sempre em vias de corromper-se sob o efeito do pecado." (p 342, 348, 1990). "Toda esta ordem social relativa necessária à conservação da sociedade, não menos que a ordem parcialmente restaurada na igreja, não tém valor nem fim em si. Não existem, uma e outra, senão em vista da vinda definitiva do Reino de Deus. Não tem, pois até lá senão uma existência provisória. E toda a história humana se desenrola na expectação desse evento." (* "Nessa cruz percebemos um triunfo mais do que magnífico, triunfo que aos maus está oculto, pois que nós aí reconhecemos que, apagados estando os pecados, foi o mundo reconciliado a Deus, a maldição abolida, Satanás derribado." Calvino, comentários ao Novo Testamento apud Biéler). "Após haver definido a origem das riquezas, que provem da abundancia e da graça de Deus... (vemos que) os bens materiais não se destinam a ser menosprezados ou rejeitados (como quer o ascetismo), pelo contrário, sua destinação é o serviço a outrem." (* "Abrir mão das riquezas, não é de si uma virtude, é, antes, uma vã ambição... Por certo que, sendo a caridade o vínculo da perfeição, aquele que a si se priva, e aos outros também, do uso de qualquer quantia, nenhum louvor merece. E essa é a razão porque Cristo não louva simplesmente vender, mas exercer liberalidade em aos pobres socorrendo" Calvino, comentários ao Novo Testamento apud Biéler). "Concebida como um meio de servir, a riqueza é legítima; a vocação do rico." (* "Para bem servir a Deus, e resistir a Satanás, aprendamos a contentar-nos cada um com sua medida; e que os ricos reflitam que tem obrigação muito maior, e que terão de prestar contas dos bens que Deus pôs nas suas mãos." Calvino, sermão sobre a harmonia dos Evangelhos apud Biéler p 433). "Em consequência da vocação fundamental do homem, chamado, em primeira planta, a conhecer a Deus e, então, incumbido de associar-Lhe á obra da Providência, com sujeitar a si a terra e toda a Criação, apresenta-nos a Bíblia mui naturalmente o trabalho agrícola como a atividade primária da humanidade (...) Esta vocação essencial, entretanto, não é limitada ao trabalho do campo. Por sua inteligência, por sua reflexão e por sua atividade técnica, a criatura de Deus é chamada à descoberta, ao conhecimento e ao senhorio de todo o Universo." (p 565-566, 1990). (* "Entretanto, não há como esquecer que todas essas graças são dádivas do Espírito de Deus, que Ele distribui com quem bem lhe parece, para o bem do gênero humano." Calvino, Institutas tomo II cap II apud Biéler p 569). "A ciência, com efeito iluminada pela fé, ajuda-nos a compreender Deus." (p 571, 1990). (* "Infinitos ensinamentos há tanto no céu quanto na terra para no-Lo atestar o admirável poder, tais os segredos da própria natureza que requerem estudo especial e o saber da astronomia, da medicina e de toda a física..." Calvino, Institutas Tomo I cap V apud Biéler p 571). "Em numerosas passagens de seus escritos, definiu Calvino as artes como dons de Deus extremamente preciosos, inspirados por Seu Santo Espírito. O Criador de todas as coisas é também Aquele Que embeleza a vida dos homens com todos os ornamentos do espírito que Ele lhes prodigaliza e com todas as obras que lhes permite executar para Sua glória." (p 573, 1990). (* "A invenção das artes e outras coisas que servem ao bem comum e ao conforto desta vida é um dom de Deus que não é de desprezar e uma virtude digna de louvor." "Mais adequadamente falaram os poetas, reconhecendo que tudo quanto é sugerido da natureza provém de Deus, que todas as artes d´Ele procedem e que devem elas ser tidas como invenções Suas." Calvino, comentários aos cinco livros de Moisés, apud Biéler p 573). "Para a teologia bíblica e reformada, a arte, fruto das disposições especiais dadas ao homem pelo Espírito de Deus, pode ser deturpada e desnaturada pelo pecado, como acontece com qualquer outra atividade humana. A arte, assim em sua essência como em seu uso, deve ser submetida às diretrizes da revelação de Deus." (p 574, 1990). "Artistas e artesãos: servidores da sociedade. * "Somos ensinados que nenhum artesão, da mais baixa condição, não atua em sua profissão, senão na medida em que o Espírito de Deus nele opera. Embora diversos sejam os dons, não há senão um Espírito do qual defluem os dons todos (1 Co 12.4), segundo a Deus haja aprazido a cada um distribuir por medida. Isto não se aplica somente em relação aos dons espirituais, que se seguem à regeneração, mas a todas as ciências que concernem ao viver comum." Calvino, comentários aos cinco livros de Moisés apud Biéler p 579). "A honestidade dos negócios, base da ordem social segundo Deus... A desonestidade nos negócios é, então, um roubo cometido às expensas de Deus, um vil assalto aos tesouros divinos." (p 581, 1990). (* "Porque a cobiça cega os homens, força-os ela, a torto e a direito, a ganhos ilícitos. Deus nega Sua bênção a todos os negócios excusos, que são como teias para apanhar a presa; pelo contrário, exorta a antes da parte d´Ele, autor de todo bem, esperar as riquezas que caçá-las através de fraudes ou rapinagens." Calvino, comentários aos cinco livros de Moisés apud Biéler p 581). "Como já observamos a propósito da doutrina calviniana do trabalho, o Reformador de Genebra é o primeiro dos teólogos de sua época a discernir, com tanta clareza, o papel providencial que exercem na sociedade e na conservação do gênero humano... as trocas e, consequentemente, todos aqueles que se voltam ao comércio. (...) Levantou-se Calvino contra os monopólios que se atribuíam certos grandes mercadores, certos representantes das altas finanças, e contra os prejuízos que estes causavam ao resto da sociedade por sua contribuição à alta dos preços e ao encarecimento do custo de vida." (Biéler, p 584, 1990). COSMOVISÃO REFORMADA. O Pensamento de Calvino segundo Henri Strohl. “Se houve qualquer movimento religioso, no século 16, que tenha tido uma atitude afirmativa em relação ao mundo, esse foi o Calvinismo.” (Alister McGrath; p 249, 2005). Agora, vamos abordar os temas, SOCIEDADE, ESTADO E CULTURA, segundo o pensamento de João Calvino, conforme anotações de HENRI STROHL, no livro "O Pensamento da Reforma”. “Calvino é, dentre os Reformadores, quem melhor elaborou seu pensamento político. Seus estudos jurídicos prévios concorreram muito nesse sentido. Haja visto o capítulo sobre o governo civil com que termina a primeira edição da IRC e que já se apresentava em forma tão acabada que não sofreu maiores alterações nas edições posteriores”. (Henri Strohl; p 230, 2004). A obra, “O pensamento da reforma”, de Henri Strohl veio suprir na década de 1960 uma lacuna considerável na formação de estudantes e acadêmicos de teologia. O conteúdo do livro aborda de forma didática, temas abrangentes do pensamento dos principais teólogos da Reforma. E, nesse tópico de nosso artigo, iremos utilizar as considerações do tema da Providência de Deus, segundo análise desenvolvida pelo autor ao pensamento de João Calvino. Henri Strohl apresenta o pensamento dos reformadores destacando algumas afirmações de suas obras literárias, enquanto desenvolve explicações para interligar os conteúdos anotados. Portanto, o texto a seguir contém o entendimento de Strohl acerca do pensamento de Calvino, sendo que as anotações realçadas foram extraídas do pensamento de ambos, conforme indicado. O PENSAMENTO de João Calvino acerca da importância da moralidade divina no mandato social do cristão está contido dentro do tema maior da Providência de Deus. Segundo Strohl, Calvino trata do tema da Providência na perspectiva de realçar o “equilíbrio entre a dependência absoluta de Deus e o dever humano da previdência.” (p 153, 2004) Calvino se posiciona contrariamente à visão “estoica” da providência, que entendia o mundo como sendo uma máquina em movimento, o que o fez salientar o aspecto sobre o modo em que a providência divina tem uma atenção e cuidado especiais pela existência de cada criatura. Portanto, a Pessoa de Deus deve ser percebida como o mestre e moderador de todas as coisas, o que significa que o Senhor vai “presidir de tal modo que as coisas presididas se conduzam com ordem e harmonia” Nesse contexto, a experiência de José no Egito se torna um exemplo utilizado por Calvino, para representar o modo como Deus governa os atos maus dos homens no interesse de que se tornem algo bom, segundo seus propósitos. (p 108, 196, 2004). UM SEGUNDO ASPECTO destacado pelo autor, apresenta o olhar calvinista de que os atos da providência de Deus não negam a importância dos atos da previdência humana, posto que, ao contrário, requerem da humanidade que assuma e pratique integralmente toda ação que for de sua particular responsabilidade. A interpretação dada ao texto bíblico de Provérbios 16.9 esclarece o princípio: “O coração do homem deve considerar seus próprios caminhos, e o Senhor governará os seus passos.”; sendo que nesse texto, Calvino deseja salientar a maneira como “o decreto eterno de Deus não impede que conduzamos em ordem nossa vida,” conquanto as nossas atitudes ocorram segundo a sua vontade. Segue um destaque das afirmações dadas pelo reformador: “Reconheçamos, portanto, nosso dever. Se o Senhor confiou-nos a guarda de nossa vida, conservemo-la; se nos concedeu meios para tal fim, usemo-lo; se nos aponta perigos, não nos lancemos neles estupidamente; se nos oferece remédios, não os desprezemos... O acautelar-se e o proteger-se são dons inspirados por Deus para que os homens conservem a vida e, assim, sirvam ao seu propósito.” (Strohl, p 113-115, 2004). A plena confiança em Deus não deve impedir o homem de fazer o que lhe cabe, mas sim, obriga-nos a praticar o que Deus delegou sob a nossa responsabilidade. Nesse contexto, os fiéis irão entender que todos os meios disponibilizados por Deus para que o homem aja com previdência, devem ser considerados como bênçãos divinas dadas à humanidade; daí que não devemos recusar os instrumentos dados pela providência divina para o cuidado de nossas vidas. Deve-se, então, acatar a segura orientação de Deus para agir com sabedoria diante da realidade, sabendo que os recursos que temos irão fortalecer a nossa confiança n`Ele; ao invés de serem utilizados para aumentar nossa soberba ou dar demasiada atenção para a nossa falta, ou abundância de recursos. (Strohl, p 154-155, 2003). Conforme Strohl, “para Calvino, a soberania absoluta de Deus, e a inteira responsabilidade do homem são dois elementos da verdade, ambos revelados, não obstante nossa mente não possa harmonizá-los.” A compreensão desse conteúdo está na afirmação de que toda vez que os propósitos de Deus são realizados através da maldade dos ímpios em desobediência a seus mandamentos, isto não significa que eles não serão culpados do que fizeram, conforme o exemplo da paixão de Cristo: “O Pai celestial entregou seu Filho à morte; Jesus Cristo entregou-se à morte; Judas entregou seu mestre à morte”. (p 155, 2004). O AUTOR ressalta um dos pensamentos mais significativos de João Calvino e do calvinismo histórico, ao expor o princípio da “GRAÇA COMUM” de Deus. E para enfatizar o modo em que esta graça foi disponibilizada a toda humanidade, o reformador assinala que “a natureza humana, conquanto decaída na sua integridade, continua possuidora de muitos dons de Deus”. Estes dons são denominados “graças naturais”, tendo sido dados a homens bons e maus, o que torna imperativo que a humanidade faça bom uso de cada um deles, para que não sejamos negligentes diante desta graça recebida. Segundo o autor, Calvino percebia alguns frutos e resultados dessa graça de um modo positivo e abrangente, posto que estes dons vieram a produzir “ideias divinas disfarçadas nos textos dos filósofos”, e uma “boa ordem e justa disciplina” nas reflexões desenvolvidas pelos juristas da antiguidade, sendo este, um princípio central da valorização dedicada pelo calvinismo para as artes e a ciência na história. (p 156, 2004). Ao tratar do pensamento dos reformadores acerca do Estado, Strohl ressalta que João Calvino foi aquele que mais se dedicou ao tema, vindo a definir que deveria ocorrer uma real distinção entre as instituições do Estado e da Igreja. Pois o propósito de Deus é abençoar toda a humanidade através das delimitações das áreas de atuação destes dois poderes: “daí porque a “liberdade espiritual pode coexistir com a submissão civil, e o poder temporal não é incompatível com o reino espiritual de Cristo.” Calvino destaca que a sociedade humana necessita do Estado, no interesse de que a ordem seja mantida num mundo que se encontra submetido ao pecado: “Os que desejam privar o homem desse amparo... necessário para sua peregrinação na terra... fazem violência à sua natureza humana”. Além deste aspecto, Calvino aborda o Estado de uma maneira mais ampla, como sendo uma instituição capaz de facilitar o desenvolvimento e ordenação da vida material dos homens, algo que, no entendimento de Strohl, propõe um “certo indício da noção do Estado como instrumento da Providência, ao lado da noção de Estado.” (p 231, 2004). Conforme as funções do Estado, como sendo uma instituição criada por Deus para regular o bem na sociedade dos homens, o reformador ensina que o magistrado (governante) deve agir positivamente acerca da religião, posto que “a finalidade da ordem temporal é manter o culto público de Deus, a doutrina e a religião puras, e o bem geral da Igreja”. “Calvino desenvolve extensivamente a tese de que, segundo a Escritura e os filósofos, às autoridades civis cabe o dever de fazer observar “as duas tábuas da Lei”. (Strohl, p 232, 2004). O entendimento calvinista de que as autoridades são vigários de Deus nas suas diversas funções na sociedade, sejam eles reis, governadores ou chefes de grupos, orienta o modo como os fiéis devem acatar toda autoridade existente, mesmo que a monarquia seja a menos aceitável, conforme indica o pensamento dos “espíritos elevados”, de Aristóteles, Platão e Sêneca. Segundo Calvino, deve-se reconhecer “a providência de Deus no fato de que diferentes regiões são governadas por diferentes formas de autoridade.” Pois, “o melhor sistema de governo é aquele em que há liberdade adequada e durável”, com um destaque acerca da importância de que esse peculiar modelo de autoridade social seja preservado; sendo que “o primeiro dever daqueles que governam um povo livre é velar para que “a liberdade do povo, do qual são protetores, não se restrinja.” (Strohl, p 232-233, 2004). Em relação ao modo como as sociedades serão governadas através das leis, não se deve considerar dura e nem ruim qualquer ação repressiva, posto que as autoridades somente executam a justiça de Deus: “o Senhor entrega a espada aos seus ministros para que a usem contra os homicidas;... o Senhor detém a mão criminosa dos homens, mas não detém a sua justiça exercida pela mão dos governantes.” Nesse contexto, Calvino entende que a legislação e o ordenamento das leis escritas são “a alma de todas as repúblicas.” (Strohl, p 234, p 14-21, 2004). Strohl anota o aspecto em que Calvino rejeita a proposição do reformador Bucer, pois este entendia que as leis de um Estado cristão deveriam seguir as regras das ordens comunitárias definidas por Moisés. Acerca deste tema, Calvino faz uma distinção de entendimento e importância entre as leis moral e cerimonial; vindo a definir que o resumo da Lei moral dada por Jesus, deve ser reconhecida como sendo a “verdadeira e eterna regra de justiça válida em todos os lugares e em todos os tempos para todos os homens que desejam orientar sua vida pela vontade de Deus”. Nesse contexto, o calvinismo entende que as leis judaicas que asseguravam o ordenamento comunitário dos homens tinham o propósito de orientar uma “pedagogia dos judeus”. Portanto, no estabelecimento de sua estruturação social, cada nação deverá legislar através das regras que forem mais adequadas às suas sociedades, com destaque para a orientação de que essas leis não devem ser contrárias às leis morais eternas de Deus, “de tal modo que, embora assumindo formas diferentes, tenham todas o mesmo propósito” (p 15, 2004). Ao tratar dos fundamentos do Direito e das Leis, Calvino ressalta a importância do direito romano na história da humanidade, posto que suas bases foram orientadas sobre “o testemunho da lei natural e da consciência que o Senhor implantou no coração de todos os homens”. O pensamento calvinista entende que a lei natural está resumida na observância do princípio da equidade, o qual orienta que as mais diversas regras e ordens dadas pelas legislações em cada época da história resguardem sempre o objetivo principal da justiça. Nesse contexto, as penalidades dadas aos crimes de furto e homicídio poderão ser mais ou menos severas, “conforme as circunstâncias do tempo, do lugar e da nação”. (Strohl, p 235, 2004). Henri Strohl finaliza as considerações sobre o pensamento de Calvino acerca do Estado, ressaltando o valor de que as autoridades instituídas por Deus para manter a ordem e preservar o mundo não devem ser percebidas como um “mal necessário”, mas sim, devem ser acolhidas com a devida honra, atenção e obediência, conforme ensinam os apóstolos Paulo, em Romanos 13, e Pedro, em sua segunda carta, no capítulo 2. (p 236-237) João Calvino destaca a afirmação do Apóstolo Pedro, de que é mais importante obedecer a Deus do que aos homens, no propósito de orientar que nenhuma destas autoridades ou ordens de governantes seja reconhecida como tendo valor, caso atue contra a vontade de Deus: “Porventura Deus, ao entregar o governo a homens mortais, renunciou inteiramente ao seu direito?”. (p 239, 2004). (Os elementos de ambos estes textos, pensamento de Calvino nas Institutas e pensamento de Calvino segundo Strohl, são parte de um artigo com três tópicos, incluídos o pensamento reformado para o Estado e Sociedade segundo Abraham KUYPER, conforme publicado integralmente na Revista Teológica Fatesul, o qual pode ser acessado no link a seguir: http://fatesul.com/publicacoes/revista-teologica/). REFERÊNCIAS. BÍBLIA, Sagrada, NVT. 1 ed – São Paulo : Mundo Cristão, 2016. _______, de Estudo de Genebra. Editora Cultura Cristã, São Paulo, SP, 1999. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. trad Waldyr Carvalho Luz - São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990. CALVINO, João. As Institutas. Editora Cultura Cristã, São Paulo, SP, 2006. _________, A Verdadeira Vida Cristã. Novo Século, São Paulo, 2001. McGRATH, Alister E. Teologia, sistemática, histórica e filosófica. Uma introdução à teologia cristã. tradução Marisa K. A. de Siqueira Lopes. – São Paulo: Shedd Publicações, 2005 WILES, J. P. As Institutas da Religião Cristã – um resumo – João Calvino. Tradução do inglês Gordon Chown. Primeira edição em português: 1984. Publicações Evangélicas Selecionadas, São Paulo – SP. STROHL, Henri. O Pensamento da Reforma. Tradução Aharon Sapsezina. – 2 ed. – São Paulo : ASTE, 2004. Autor. Ivan Santos Rüppell Júnior é professor de Teologia e ciências da religião.

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